A “Indicação Técnica” (sic) para o Patrimônio Cultural Carioca
- GEPPC
- 22 de abr. de 2020
- 6 min de leitura
A “Indicação Técnica” (sic) para o Patrimônio Cultural Carioca
Um endosso na marcha à ré da Res publica brasileira
Por Luciano Chinda Doarte*
“Levando em consideração essa afirmação, era de se esperar que no IPHAN, órgão federal, as coisas seguissem o critério técnico. Ou será que não era de se esperar?”

Paisagem com uma Moça, sem data, Cícero Dias
43,5 cm X 32 cm, serigrafia, Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães
A moça retratada por Cícero Dias em Paisagem com uma Moça pode bem lembrar a imagem da turismóloga e blogueira que anda pelos canais de fibra ótica e pelos sinais invisíveis das redes circulando publicada em diferentes meios de comunicação. A mulher, em sua foto reproduzida do seu Instagram diretamente para os jornais e para as revistas de diferentes tipos nos últimos dias, aparece posando com uma paisagem verde ao fundo, algo como uma serra. Respeitando a imagem dela e por melhores prazeres estéticos, escolho a obra de Dias que, novamente, pode até lembrar a foto da moça que assume um alto e importante cargo em um instituto federal, e que por isso é assunto na seara patrimonial brasileira contemporânea.
Recentemente ficou famosa, ao menos nas redes sociais, a nomeação de Monique Baptista Aguiar para atuar na Superintendência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional do Rio de Janeiro. De imediato talvez nada incorresse ao caso, afinal é um cargo de comissão sendo ocupado por uma indicação e, até onde se sabe, tudo dentro da normalidade e das possibilidades jurídicas. Ocorre que isso lembrou a muitas pessoas dedicadas ao patrimônio cultural, como eu, de dois pontos centrais na narrativa que alçou o atual governo federal na cadeira na qual senta hoje: as “indicações técnicas” e o paulatino desmonte da cultura brasileira.
Começando cronologicamente do começo – com o perdão do pleonasmo –, ainda em campanha o atual presidente deixou claro que em seu governo não aconteceriam indicações políticas de conchavo para os seus ministérios e afins, uma vez que a capacidade técnica, o currículo seria considerado e avaliado para tal, ou, como bem exemplifica a entrevista dada por Jair ao R7 Notícias quando da campanha:
[...] a nomeação de um ministério técnico, que realmente possa corresponder aos anseios do povo brasileiro e não de agremiações político-partidárias.
Levando em consideração essa afirmação, era de se esperar que no IPHAN, órgão federal, as coisas seguissem o critério técnico. Ou será que não era de se esperar? Levando em consideração que, logo que tomou posse, Jair ocupou os ministérios ouvindo uns e outros e a própria regra de tecnicidade foi posta em suspenso, convertendo-se – ou desnudando-se – em regra de fidelidade ideológica, talvez não fosse mesmo de se esperar. Em março de 2019 o presidente editou um decreto que previa os critérios necessários para a ocupação dos cargos, como mostrou a Folha de S. Paulo. Os pontos que parecem em algum momento terem sido essenciais, ao menos no discurso, foram ter a reputação ilibada, ter perfil profissional e acadêmico afim com a área, não estar inelegível de acordo com a Lei da Ficha Limpa e ter experiência profissional na área.
Esse protocolo, apesar de ter sido publicado em março, passaria a valer apenas em maio do mesmo ano. Entretanto, não foi necessário esperar até quase a metade de um ano de governo para poder avaliar a defesa pouco crível da tecnicidade. Em menos de quinze dias de governo, Jair já havia se cercado de nomes que o faziam bem pelo próprio jogo político e não para “corresponder aos anseios do povo brasileiro”, como mostraram os casos das nomeações de Antonio Hamilton Rossell Mourão, filho do vice-presidente Hamilton, dentro do Banco do Brasil onde, apesar de atuar há dezoito anos, encontrou uma escalada mais rápida após a eleição de seu pai que, por sua vez, disse nada ter a ver com a situação; ou ainda a nomeação de Ricardo Vélez Rodríguez, professor emérito da escola de elite do Exército, que fora indicado por Olavo de Carvalho, para o cargo de Ministro da Educação no início do governo Bolsonaro. Seu substituto, Abraham Weintraub, também não parece ter os critérios específicos para se tornar um Ministro da Educação, apresentando um currículo (na Plataforma Lattes) medíocre para o cargo que ocupa, sendo facilmente ultrapassado em produção e impacto científico por muitos estudantes de pós-graduação stricto sensu brasileiros.
Mais recentemente tivemos outros dois casos que denunciam a relação entre eufemismo de discurso vazio e a prática política federal – que ecoa o discurso vazio: a nomeação de um militar para Ministro da Casa Civil, por mais discordante que a própria frase é por si, quiçá a prática, como mostrou o Jornal Nexo; e as recentes ofertas de cargos no poder executivo aos partidos na tentativa de consolidar uma nova estrutura de base aliada no Congresso Nacional depois de desgastes políticos profundos no início de 2020, como mostrou O Estado de S. Paulo.
Nesse sentido, segundo dão conta as notícias mais recentes, como a da Folha de S. Paulo, o eco do discurso vazio continua retumbando nas paredes do Palácio que abriga Jair e as negociações em prol da formação de uma base mínima e medíocre – mínima em números e medíocre nas pautas que endossam – parecem ocupar os dias do presidente brasileiro, que não se ocupa nem com o discurso originário da “nova política” sobre a preocupação com a competência técnica para os cargos a serem distribuídos, nem, tampouco, com a gestão pública sobre o patrimônio cultural, o que, curiosa, mas não espantosamente, sublinham a mesma coisa: a produção de eco do discurso vazio.
Deixando as alterações entre o começo de 2019 e o primeiro trimestre de 2020 no órgão para outro momento – e, então, não dando nome a todos os bois –, pois já são problemas demais para um governo, me ocupo apenas da nomeação de Monique agora. Nas redes sociais, como no seu perfil do Instagram – ao menos no momento da escrita desse texto –, Monique se apresenta como turismóloga e atriz e passa:
Dicas de turismo, cultura, gastronomia, hospedagem e eventos.
Também é criadora do blog Com Olhar Turístico que tem como apresentação, também no Instagram:
Dicas e informações do turismo histórico e cultural! Pelo olhar da blogueira Monique Aguiar [o nome aqui grafado substitui a identificação de usuário da própria rede social].
Em uma consulta na Plataforma Lattes, famosa base de dados que reúne currículos de pesquisadores e acadêmicos de todas as áreas do saber no Brasil, a busca pelo nome de Monique Baptista Aguiar não encontrou resultados, o que aponta, infiro aqui, alguma ausência de atividade de pesquisa e/ou ensino na área do patrimônio justamente porque, como apontou o critério [discursivo] tecnocrata do governo federal, a maioria esmagadora dos cientistas das mais diferentes searas de produção mantém currículos nessa plataforma, por meio do qual atualizam suas pesquisas, publicações, ações técnicas e outras atividades.
Segundo o Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio de Janeiro a blogueira:
[...] assume cargo que tem por prerrogativa regimental coordenar e orientar equipes e ações de naturezas e complexidade variadas na gestão dos bens protegidos como patrimônio nacional em todo estado do Rio de Janeiro, incluindo aí as rotinas de fiscalização, recuperação e licenciamento referente ao vasto e importante acervo arquitetônico tombado ou ainda de sítios arqueológicos registrados.
A preocupação maior dos especialistas é que o cargo em questão, há mais de 30 anos, era tradicionalmente ocupado por um ou uma profissional da arquitetura e urbanismo que deveria, então, respaldar tecnicamente as ações do IPHAN no estado do Rio de Janeiro.
E a defesa desse tipo de tecnocracia não se dá pelo corporativismo em favor da arquitetura, mas em favor da formação competente de profissionais que tenham embasamento teórico e prático para gerenciar um tema que vem sendo cada vez mais desprestigiado no Brasil. Certamente, ainda, para além da formação acadêmica específica, é essencial a experiência profissional na área patrimonial, a noção dos protocolos, dos conceitos, das funções legalmente estabelecidas da atividade. Por isso creio que a edição de um blog por conta própria, seguindo as regras das redes sociais, da publicação e da divulgação não dão conta de embasar uma experiência técnica para a gestão de um tema tão sensível para a sociedade como a cultura, especialmente a do patrimônio que atua sobre a memória, o passado e outras forças subjetivas.
Afinal de contas, por mais que não pareça a olho nu (e isso é culpa de um histórico baixo investimento na cultura em suas diferentes frentes, sentido profundamente nas ações em prol do patrimônio), o patrimônio cultural, sua defesa, seu estudo e suas articulações sociais não se dão apenas pelo viés turístico – que quando feito de maneira séria é um importante aliado das atividades patrimoniais – e estético com fotografias colocadas em blog acompanhadas de dicas sobre as melhores refeições ou os hotéis com lençóis mais macios, uma vez que visitar Pelourinho não se restringe às vivas cores das fachadas e que fotografar a Baía de Guanabara não está vinculado somente aos tons celestes.
Por fim, é essencial registrar que diversas entidades de especialistas estão produzindo posicionamentos contrários ao nome de Monique Aguiar ao IPHAN do Rio de Janeiro (dada a falta de experiência necessária ao trabalho que deverá desempenhar), sobre as quais saliento a produção da Nota do Fórum de Entidades em Defesa do Patrimônio Cultural Brasileiro Sobre as Recentes Nomeações para o IPHAN, assinada por representantes de arquitetos e urbanistas, gestores culturais, historiadores, antropólogos, engenheiros, técnicos de museus e outros tantos profissionais que não só se preocupam genuinamente com o patrimônio cultural brasileiro como existem e resistem aos abalos do desmonte em curso.
* Luciano Chinda Doarte é historiador, professor e um dos coordenadores do Grupo de Estudos e Pesquisas em Patrimônio Cultural (GEPPC).
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