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Da Guerra, da Percepção e do Culto às Lembranças Heroicas

  • Foto do escritor: GEPPC
    GEPPC
  • 15 de set. de 2024
  • 17 min de leitura

Atualizado: 16 de set. de 2024

Da Guerra, da Percepção e do Culto às Lembranças Heroicas

O caso da exposição da Força Expedicionária Brasileira no Museu Municipal Atílio Rocco


Por Luciano Chinda Doarte*


"Isso resolve os problemas de violência no mundo? Não, mas onde o Museu alcança para deslegitimar a dor ao outro como regra, há de se fazer […]."

Força Expedicionária Brasileira, 2002, Paula Schmidlen

Óleo sobre tela, acervo do Museu Municipal Atílio Rocco


A um diretor de museu, em especial de um museu com alguma estrutura de serviços de ação educativa, não é muito comum a realização de mediações de visitas para grupos em geral, em especial para o público infantil. Dado que a instituição possua equipe para tal, dificilmente o dirigente realizará este trabalho. Exatamente neste cenário me encontro, tendo por função administrar um museu histórico que possui equipe para os trabalhos educativos. Todavia, em sendo professor, por vezes escolho realizar estas mediações nas salas expositivas, mais comumente para grupos de adultos, sobretudo estudantes universitários, em visitas noturnas.

 

Mais recentemente, dedicado a pensar algumas características e alcances dos museus na vida social, passei a empenhar esforços em pensar no serviço educativo e na monstruosa potência que esse trabalho possui. Por isso, vez por outra, como se deu recentemente (o que motivou as reflexões que seguem neste texto), optei por atender grupos escolares do Ensino Fundamental I, para ter contato com o, por assim dizer, “chão de fábrica” da coisa da educação.

 

As visitas são sempre entremeadas por acontecimentos que o mundo adulto já tolheu há muito tempo, limitando nossos pensamentos e formas de comportamento. Entretanto, há acontecimentos reiterados que, penso, valem um olhar mais cuidadoso. No dia 11 de setembro de 2024, atendi uma turma com – talvez – vinte e cinco crianças, das quais um tinha dez anos de idade e as demais, variavam em oito ou nove.

 

Durante a visita, o ainda não totalmente mapeado funcionamento da operação ensino-aprendizagem das crianças estava, como de costume, muito ativo. Em determinado momento, explicando sobre colônias agrícolas do século XIX, um menino levanta a mão e pergunta “como é que se fazem as pessoas?”. Choque, meio riso, silêncio e uma resposta evasiva dizendo “vamos continuar vendo os mapas, por favor?”. Em outra sala da mesma mostra, a preocupação de uma menina foi “se plantavam muitas batatas, não conseguiam vender tudo e tinham que comer as batatas que plantaram, o que faziam [os colonos] se desse dor de barriga?”. Percebe-se que o problema histórico se tornou outro, não necessariamente a produção agrícola do Brasil imperial e, depois, recém-republicano.

 

Em outra exposição, acerca de culturas e biografias negras no município, a atenção dedicou-se totalmente a discutir e desmerecer teses racistas. Ainda, a pensar em coisas como “uma pessoa negra, que era escravizada, podia casar com uma pessoa branca?”; “como eram as torturas que faziam nas crianças?”; “onde essas pessoas [escravizadas] moravam?”; etc. Mais uma vez, o mote da mostra, a saber: as vidas e feitos de pessoas como Serafim Machado, Zacarias Alves Pereira, Marco Aurélio Rosa e outras pessoas negras de destaque histórico no município de São José dos Pinhais passaram ao largo.

 

O que não significa um esforço perdido, dado que o tema racial estava ali, com perguntas sérias que foram do sistema de casamento e parentesco no Brasil colonial e imperial até os regimes de trabalho e justiça no contexto da escravização moderna mercantil. No caso da mostra sobre a cartografia história, na qual as preocupações foram a dor de barriga e a reprodução humana, no fundo, infere-se, os temas eram pertinentes à discussão, pois se tratava da economia agrícola, das práticas alimentares e das práticas de saúde e bem estar da população e, por fim, da condição material de ocuparmos com pessoas um território falaciosamente taxado como “vazio histórico”.

 

Ao fim da visita, que se dá por um roteiro previamente escolhido pela professora responsável pela turma, a visita não passara pela sala alusiva à participação de São José dos Pinhais na II Guerra Mundial. Mas, com um modo particular de pedir/insistir/convencer, os estudantes escolheram que, sim, a visita passaria por ali. Desde a porta até a entrada na sala, a turma como um todo, inclusive os membros que até ali estavam mais apáticos e mais quietos, esteve em polvorosa vendo medalhas, marmitas, uniformes e fotografias, com olhos arregalados e expressões coletivas de espanto e um tipo de “maravilhamento”.


Sem título, 2024, João Fernandes Alves Neto

Fotografia digital, acervo de João Fernandes Alves Neto


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Sabemos na intelectualidade ocidentalizada que o corpo, os sentidos e a mediação de algo imaterial de individualidade com o mundo “do real” pode se dar justamente pela materialidade incontornável imediata: a existência corpórea do ser humano enquanto coisa viva e em atividade, seja biológica, seja social.

 

Maurice Merleau-Ponty sublinha a presença deste corpo humano no espaço e no tempo para a realização do fazer-se presente no mundo e em experiências diversas, dizendo:


A síntese do tempo assim como a do espaço são sempre para se recomeçar. A experiência motora de nosso corpo não é um caso particular de conhecimento; ela nos fornece uma maneira de ter acesso ao mundo e ao objeto, uma "praktognosia" que deve ser reconhecida como original e talvez como originária. Meu corpo tem seu mundo ou compreende seu mundo sem precisar passar por "representações", sem subordinar-se a uma "função simbólica" ou "objetivante" (MERLEAU-PONTY, 1999: 195).

Eduardo Miranda, nesta esteira de potência do corpo para as percepções, elabora a ideia de corpo-território, que “é um texto vivo, um texto-corpo que narra as histórias e as experiências que o atravessa” (2020: 25). O corpo-território de Miranda é aquele que aciona e provoca a experiência para muito além da visão, que é o sentido predominante da cultura ocidental. Assim sendo, paladar e audição, por exemplo, tomam o mesmo patamar de importância da visão, auxiliando a estabelecer conexões mais variadas e aprofundadas com o ambiente, com as gentes e com os discursos. Diz o autor:


Exercitar esses sentidos é permitir ao corpo-território viver/existir a partir de sua própria experiência e não se reduzir a viver pela linguagem e experimento do outro. Ou seja, olhar o mundo, exclusivamente, pelas narrativas do outro pode se tornar problemático, já que o nosso corpo-território recai na leitura embaçada e colonial sobre os elementos que compõem as suas espacialidades, em que muito se perde, detalhes são minimizados, particularidades são homogeneizadas. O corpo-território precisa experimentar o mundo com leituras próprias, para sentir a energia vital presente no encontro com o outro, [...]. Comecei a perceber que o olho vê o mundo, mas é o corpo-território que olha o mundo, que sente o outro, que se atravessa das experiências, que rasura as nossas certezas, fervilha a nossa imaginação (MIRANDA, 2020: 27).

Isto posto, a primeira reflexão colocada acerca da presença do indivíduo no mundo é o incontornável do corpo, com suas limitações e potências de ação. A afetação – e a palavra é exatamente esta – se dá de forma muito intensa na relação do nomeado corpo-território junto do mundo “do real”, onde pisamos, ouvimos, falamos todos os dias. E é essa afetação, é o atravessamento das coisas do mundo sobre o indivíduo e vice-versa, de modo a retroalimentar e manter um funcionamento de vida e de mundo, que configura, auxilia, permite a percepção desde o ser individual sobre o todo que o cerca e que este re-produz.

 

George Berkeley, pensador cristão irlandês, nomeou, em diferentes trabalhos, a noção de que “ser é ser percebido”. Ou seja, para que algo receba alguma existência no mundo “do real”, é necessário que um indivíduo, dotado de suas potências e de forma atrelada ao eu corpo (porque é incontornável), a perceba enquanto tal e enquanto parte de um mundo. Em seus textos, Berkeley remeteu muitas vezes ao “espírito”, o que faz sentido em sendo ele um homem cristão e, inclusive, sacerdote. Todavia, infere-se, podemos tensionar essa atribuição à ideia de indivíduo, ser que é percebido e que percebe o mundo e que, com isso, ajuda na atribuição de sentidos e funcionamentos.


Todos concordarão que nem os pensamentos, nem as paixões, nem as ideias formadas pela imaginação existem sem o espírito; e não parece menos evidente que as várias sensações ou ideias impressas nos sentidos, ligadas ou combinadas de qualquer modo (isto é, sejam quais forem os objetos que compõem), só podem existir em um espírito que as perceba. Qualquer um pode ter disto conhecimento intuitivo se notar o sentido do termo "existir", aplicado a coisas sensíveis. Digo que existe a mesa onde escrevo - quer dizer, vejo-a e sinto-a; e se estiver fora do meu gabinete digo que ela existe, significando assim que se lá estivesse vê-la-ia, ou que outro espírito atualmente a vê. Houve um odor, isto é, cheirava alguma coisa; houve um som, isto é, ouviu-se algo; uma cor ou uma forma, isto é, foi percebida pela vista ou pelo tato. É tudo o que posso entender por esta e outras expressões. O que se tem dito da existência absoluta de coisas impensáveis sem alguma relação com o seu ser-percebidas parece perfeitamente ininteligível. O seu ser é serem percebidas; nem é possível terem existência fora dos espíritos ou coisas pensantes que os percebem (BERKELEY, s.d., s.p. [22]).

Assim sendo, temos que o corpo é importante na relação do indivíduo para com o mundo e que a percepção que o corpo opera ajuda a dar sentido de “ser”, de existência no mundo “do real” às coisas, portanto, às narrativas, às cores, às distâncias e perspectivas, aos sons, às operações, aos códigos. Alinhavado ao funcionamento dos museus, há de se pensar uma vez mais no que nomeei em outra ocasião de um familiar alterizado no funcionamento dessas instituições, em especial nos museus de história.

 

Por familiar alterizado (DOARTE, 2022: 46), opera-se a noção de que o museu é um lugar físico e simbólico que maneja assuntos que tanto são “familiares”, enquanto de pertencimento dos indivíduos vivos e que se servem dele, pensando o processo histórico, ao mesmo tempo em que há um teor de “alteridade”, dada a diferença, por exemplo, temporal e existencial de acontecimentos, datas, usos e modos que já não mais têm sentido no seio social de um dado contemporâneo.


A instituição legisla sobre o passado – dado que é um lugar de memória –, com vias aos discursos sobre a história totalizante de um espaço ou grupo. Ao menos, é o que a teoria museal e a legislação permitem. Assim sendo, tratam de um lugar, de uma familiaridade, de um pertencimento. Todavia, isso se cooptado para tal equação o largo passado histórico sobre o qual se legisla, transformado em massa informe e genérica. […] É por essa relação ambígua que o museu histórico é entendido aqui, em relação ao seu contexto social, como um produtor constante de uma familiaridade alterizada, pois a história individual pode ser inserida no largo arco de passado histórico operado no discurso legitimado, mas, ao mesmo tempo, os pertencimentos propostos pela instituição não necessariamente serão adotados pela empiria social (DOARTE, 2022: 46; 47).

No contemporâneo imediato, os discursos propostos pelo museu concorrem – e se não concorrem, ao menos coexistem – junto dos demais discursos, cada qual com sua forma de inserção e articulação em sociedade. No caso aqui abordado da II Guerra Mundial, podemos pensar diretamente no cinema estadunidense. Filmes como Pearl Harbor (2001), A Queda – as últimas horas de Hitler (2004), Dunkirk (2017), Bastardos Inglórios (2009) e O Resgate do Soldado Ryan (1998) criam uma narrativa e um imaginário de força, vitória, superação das adversidades e heroísmo para membros dos exércitos aliados. Muito dificilmente uma obra cinematográfica apresenta o sangue, o suor e as lágrimas da participação dos soldados na guerra como Nada de Novo no Front (2022). Como regra geral, homens brancos, fortes, altruístas com os seus e impiedosos com os inimigos, passam pelo inferno, se precisarem e, ao fim, são heróis que cumprem grandes e importantes feitos para a “humanidade” como um todo, como o personagem de Brad Pitt em Corações de Ferro (2014).

 

Além dos filmes, temos no século XXI a potência dos videogames que, por si só, consolidam uma importante forma de linguagem cultural. Esses itens de cultura têm artes visuais em seus designs, música em suas trilhas sonoras, literatura em seus roteiros, tudo isso combinado com uma imersão própria da tecnologia digital, tão atrativa às mentes atualmente. Call of Duty: WWII (2017), Battlefield 1942 (2002), Medal of Honor Frontline (2002), lançados para consoles diferentes e cada vez mais tecnológicos, são exemplos que grandes vendas no mundo do entretenimento dos videogames sobre o assunto. Assim como nos filmes, o protagonista nunca é um soldado que morre e sofre assim que desembarca na costa da Normandia. Ele é, isto sim, um herói, que corre, que se esconde, que atira, que mata e não morre.

 

Essas imagens e essas narrativas acabam por gerar percepções que justificam tanto em crianças quanto em adultos, o “maravilhamento” com o tema da II Guerra Mundial. Maravilhamento este perigoso para o entendimento racional e “do real” sobre a guerra, suas funções e seus horrores permanentes.

 

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No caso do Museu Municipal Atílio Rocco, o tema da II Guerra Mundial é quase que uma exposição na qual não se mexe e da qual quase ninguém pensa em se desfazer. Não posso afirmar a data de abertura desta mostra, entretanto, cabe o registro de que, em 1995, quando da comemoração do cinquentenário do fim da II Guerra Mundial e da vitória dos Aliados, com quem o Brasil dividiu trincheiras, a praça ao lado do Palacete Ordine, já na ocasião sede do Museu Municipal, foi nomeada Largo do Expedicionário. Nela, foram instaladas três placas de bronze com o nome do Largo e dos ocupantes da gestão pública local de então e outras duas, cada uma com um poema sobre a força e a luta da FEB.

 

Os poemas são de Leopoldo Scherner e Eulália Maria Radtke. Ele, era exemplo de intelectual no município, foi aluno de Manuel Bandeira, estudou literatura portuguesa e linguística e foi professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná por quase cinquenta anos. Ela, além de escritora e poetisa, foi a primeira Secretária Municipal de Cultura de São José dos Pinhais e ajudou a conformar a ideia de ação cultural na região. Portanto, não eram quaisquer escritores, eram os melhores do contexto. São os textos:


Aos expedicionários são-joseenses da Segunda Grande Guerra 1939-1945
Pássaros verdes e amarelos, / eles foram e voltaram, / Pássaros verdes e amarelos, / foram e não voltaram. / E todos voltaram. / Ai, meus pássaros-soldados brasileiros / e de São José dos Pinhais: / descobriram os ares e os mares / e se foram e se foram. / Olhos abertos / que nada mais viam. / Um derradeiro pensamento muito longe, muito vago: / estradas, campos, o pai, a mãe, os irmãos, / a namorada chorosa. / O sangue ficou, / mas todos voltaram: / voltaram de asas quebradas, / de asas cortadas, / de vida cortada, / mas todos voltaram. Leopoldo Scherner.

O chão de Pistóia arde / há cinquenta anos, / foram rosas plantadas de sangue / há cinquenta anos / sob as chagas da serpente / - o desígnio totêmico da paz. / Aqui no largo / um livro brota / corpóreo, violáceo. / Aqui ou na Europa / os quintais da existência / têm as mesmas coisas: / folhas secas / pedras seculares / cacos de vidros / - estilhaços de nascer e partir / - um mar de eterno ronco / densa vida / densos todos. Eulália Maria Radtke.

Estas peças, infere-se, constituem um monumento. Não do tipo portentoso e artisticamente impressionante, mas um referencial material e propagandista de um conteúdo: o heroísmo dos soldados locais na II Guerra Mundial. Este monumento – curiosamente, apesar de não ser de dimensões monumentais – atua como um ícone de rememoração e de celebração de uma coesão social.


Do ponto de vista filosófico, os monumentos salvam a humanidade do esquecimento, oferecem um sentido de continuidade da vida. Essa é a noção do monumento como um “universal cultural” que possibilita a fuga da ação do tempo pessoal e o mergulho em um tempo coletivo. O tempo de uma vida humana é breve demais, mas o tempo da existência em sociedade convida à sensação de imortalidade, fortalece o pertencimento e o interesse pela manutenção do grupo (SEVERO, 2004: 2).

Cabe ressaltar mormente em um mundo de excessos de informações como o é o século XXI, que há uma escolha consciente e humana sobre o erigir destes produtos culturais em sociedade. Ou, como registra Michael Bhaskar, “o que define a vida no Ocidente são os problemas do excesso, não da falta” (2020: 28). Bhaskar fala isso a partir de uma interpretação criada por ele acerca da curadoria das coisas, das informações, dos modos e – por que não? – das lembranças e esquecimentos. Nas palavras do autor:


Num mundo de coisas demais, é essencial selecionar, escolher e reduzir. No contexto do excesso, curadoria não é só um modismo. Ela dá sentido ao mundo (BHASKAR, 2020: 32).

Isto posto, cabe ainda que no espaço do Museu Municipal Atílio Rocco, o tema da II Guerra Mundial ainda conta com a já citada exposição de bastante longa duração. A sala é composta por vitrines que apresentam medalhas, autógrafos de ex-combatentes, emblemas de uniformes, marmitas, cantis, óculos, capacete e outros pequenos itens que pertenceram a soldados em campo de batalha. Ainda, uniformes fazem parte da mostra, junto de um painel com fotografias e uma lista de nomes de jovens homens são-joseenses convocados para o conflito. A lista de nomes se tornou quase que ela mesma um memorial, havendo visitantes que adentram ao museu única e exclusivamente para encontrar uma vez mais o nome de um antepassado ali.

 

A II Guerra Mundial, sem muita mediação de painéis informativos, está ali colocada como processo penoso, mas de coragem, na qual a violência e as dores dão lugar à virilidade e às capacidades combativas dos brasileiros envolvidos nela. No fundo, desde 1995, o heroísmo desenhado sobre estes homens ajudou a conformar um entendimento de que a violência, a invasão do país alheio, a morte, a dor e a fome foram o honroso caminho trilhado por estes que passam a ser heróis nacionais.

 

Ainda compõe a exposição uma pintura (capa deste texto), que mostra mais por símbolos e sugestões que por figurismo naturalista uma espécie de Guernica. A pintura de Paula Schmidlen tem uma profusão de soldados em vestes verdes. Rostos borrados. O símbolo da cobra fumando nos ombros dos homens. Na cena, dois pontos de vermelho sugerem o sangue de um atingido, carregado para a esquerda pelos companheiros. Enquanto isso, a maioria dos olhos e/ou dos rostos fantasmagóricos voltam-se para a direita, onde um soldado bem destacado segura o que o hino chama de “lindo pendão da esperança” e “símbolo augusto da paz”. “Símbolo augusto da paz”, em meio à guerra e a um quadro que tem ao fundo cores quentes entre amarelo, alaranjado e vermelho, talvez sugerindo o fogo, a explosão, a bomba em um campo de batalha.

 

Mais ou menos fora deste discurso, encontra-se o avental de Jandyra, uma enfermeira mineira que participou da II Guerra Mundial e que teve este seu instrumento doado ao museu em São José dos Pinhais. O uso dado é a representação do papel feminino da II Guerra Mundial. Ainda, tentando tensionar mais ou ampliar a ideia de soldado e de guerra, a sala comporta um pequeno painel e um uniforme de um soldado Boina Azul, Tomaz Stonoga Filho (falecido muito recentemente), demonstrando o trabalho do exército de paz da ONU no conflito ente Egito e Israel em 1958.

 

Independentemente da proposta, a atmosfera toda que se alimenta é a da força, da importância e do trabalho heroico destes que dão a vida, se necessário for, por uma causa nacional ou transnacional muito maior que eles mesmos. Isto, aliado à uma memória de vitória e aos itens culturais de ampla circulação, como os citados cinema e videogame, dão à mentalidade contemporânea certo saudosismo do próprio heroísmo, da própria guerra, como que legitimando a violência e a dor para que a festa do sucesso se concretize.

 

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No ano de 2022, como parte do projeto Tem Estudante no MuMAR, após as visitas à instituição, os estudantes, já na escola, realizavam atividades variadas sobre a aula no museu. Uma das atividades mais comuns eram os desenhos, pelos quais as crianças passavam a representar o que mais gostaram, o que mais chamou atenção, o que de mais legal possam ter encontrado.

 

Naquele ano, para a preparação de novas exposições, uma sala exclusiva para a Ação Educativa fora preparada e, nela, fotografias de escolas em visitas e desenhos dos estudantes foram expostos a fim de gerar algum pertencimento das crianças para com aquele espaço. Na pesquisa e na triagem de desenhos feitos pelos estudantes, um chamou-me sobremaneira a atenção: uma criança de, talvez, sete anos, desenhou que o tema da II Guerra Mundial lhe fora o mais interessante. O desenho é o que assusta.


Sem título, 2022, Nome preservado por ser menor de idade

Desenho de lápis sobre papel, acervo do Museu Municipal Atílio Rocco


No fundo, se nota a tentativa de dois desenhos que talvez devessem ser aviões ou grandes projéteis de mísseis. Essa tentativa claramente fora abortada e um apagamento insuficiente fora feito. No desenho finalizado em quatro pequenos quadrinhos, um míssil ou um avião tripulado está em pleno voo (quadro 1), perde altitude e direciona seu bico ao chão (quadro 2), cai e se incendeia ainda com sua forma preservada (quadro 3) e, por fim, há pessoas correndo e outras já caídas, provavelmente mortas, em meio a um grande incêndio (quadro 4).

 

Espanta a crueza do desenho elaborando visualmente o que, em verdade, fora inclusive narrado por pilotos ingleses que usaram bombas incendiárias sobre as cidades alemãs, como o escrito por W. G. Sebald em Guerra Aérea e Literatura, onde diz:


Houve muitos desses grandes incêndios nessa época. Ouvi uma vez um antigo artilheiro aeronáutico contar que do seu lugar junto à escotilha da cauda ainda se via Colónia a arder quando já sobrevoavam a costa holandesa, uma mancha de fogo na noite como a cauda de um cometa imóvel. De certeza que de Erlangen ou Forchheim era possível ver Nuremberga em chamas e dos montes sobranceiros a Heidelberg o clarão sobre Mannheim e Ludwigshafen (SEBALD, 2011: 31-32).

Muito provavelmente sem saber disso, uma criança de menos de dez anos elaborou e percebeu, portanto, passou a ser para ela que o de mais interessante fora a temática da guerra e, por isso, da violência, da invasão e da morte. No desenho, um pequeno são-joseense do século XXI conseguiu colocar em imagem o que um escritor dos meados do século XX descreveu como forma de registro da dor do povo alemão durante a invasão/retomada pelo Ocidente dos territórios das grandes cidades.

 

Pessoalmente, ao me deparar com o desenho, tomado por um susto, o rompante imediato fora o de encerrar a exposição a fim de evitar estas percepções elogiosas à violência da guerra. Todavia, ouvindo ideias de pessoas que de diferentes maneiras atuam com o tema do museu, das exposições, da pesquisa e do ensino, vi-me também a perceber que encerrar a mostra evita uma potência enorme: o uso do mesmo tema, dos mesmos quadros e das mesmas cores para operar uma anti-tradição. Para realizar um discurso que evite o elogio à violência.

 

De modos profundamente diferentes, porque o trecho abaixo trata de monumentos em espaços públicos e aqui se faz uma leitura de uma exposição em um museu, penso que a ideia de desmonumentalização de Ana Bugnone ganha corpo também neste cenário. Diz a autora:


[…] la desmonumentalización de los últimos años encarna una crisis de representación monumental que cuestiona las bases de las ideas, narrativas e imágenes que ciertos monumentos ex-presan. Así, la desmonumentalización y las intervenciones en monumen-tos se transformaron en una plataforma de acción estético política que implica estrategias de actualización discursiva de acuerdo con visiones reivindicativas de la historia y la memoria sobre comunidades, colectivos y sujetos usualmente ubicados en posiciones subalternas (BUGNONE, 2024: 4).

  “Plataforma de ação estético-política”. Aí está a potência de não calar, mas de intervir diretamente sobre aquilo que pode estar causando entendimentos que vão contra aos ideais sociais que elaboramos para um mundo e uma sociedade melhores.

 

No caso específico das visitas escolares do Ensino Fundamental I, mais recentemente, a estratégia adotada, antes de alterações na própria sala expositiva da II Guerra Mundial (portanto, fazendo uso da materialidade que já está ali), é a operação de um discurso crítico que leve os próprios estudantes a pensarem.

 

Comumente, ao entrar na sala, as crianças estão animadas, em polvorosa, perguntam, apontam, se maravilham com o que veem. Em seguidas, colocadas sentadas no chão, passamos, como fiz na visita citada no início deste texto, a questionar coisas como “o que temos aqui?”. As respostas são rápidas e ainda animadas. Logo em seguida, as perguntas passam a ser “para que serve uma guerra?”, “o que faz um soldado em uma guerra?”, “é correto que a gente chame de herói pessoas que invadem, pilham e matam?”.


Sem título, 2024, João Fernandes Alves Neto

Fotografia digital, acervo de João Fernandes Alves Neto


É impressionante como, com suas próprias percepções, as fisionomias se alteram (mas não a animação em participar), e crianças de oito, nove ou de anos passam a conversar, discutir e pensar em coisas que costumam acabar em rechaço à violência, com exemplos que, para elas, são concretos. “Se eu for amigo do fulano e depois não for mais, eu não posso roubar as coisas dele e invadir a casa dele só porque eu quero”. O corpo, a interação e a percepção do mundo e dos temas à volta podem, sim, ser conduzidos e até alterados quando outras condicionantes são colocadas sob o olhar de quem vê, de quem percebe.

 

Ou, outra fala, como aconteceu nessa visita: “a gente devia dar medalha para quem cuida das pessoas, não para quem mata!”. No fundo, não sei quem são “quem cuida”. Talvez os pais, os professores, os trabalhadores da saúde. Mas está aí a troca do tiro pelo cuidado. A troca da celebração da violência pela proposta de solidariedade. Isso resolve os problemas de violência no mundo? Não, mas onde o Museu alcança para deslegitimar a dor ao outro como regra, há de se fazer e agilizar formas de uma criticidade dos próprios sujeitos para que pensem e repensem suas vidas, com sete, com vinte, com cinquenta e três ou com setenta anos de idade.

 

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* Luciano Chinda Doarte é historiador, professor e um dos coordenadores do Grupo de Estudos e Pesquisa em Patrimônio Cultural (GEPPC). Atualmente é Diretor do Museu Municipal Atílio Rocco e Assessor Técnico do Gabinete da Secretaria Municipal de Cultura de São José dos Pinhais/PR.

 

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REFERÊNCIAS

BHASKAR, Michael. Curadoria: o poder da seleção no mundo do excesso. São Paulo: Edições SESC São Paulo, 2020.

BERKELEY, George. Tratado Sobre os Princípios do Conhecimento Humano. S.e., s.l: s.d. Recurso digital.

BUGNONE, Ana. Develando Monumentos: conflictos sociales y cambios culturales en el proceso de desmonumentalización de dos casos argentinos. Estudios Públicos, Online First (agosto 2024), 1-40.

DOARTE, Luciano Chinda. A Identidade Cultural Afro-brasileira no Museu Municipal Atílio Rocco: um estudo sobre mudanças narrativas e propostas curatoriais (2010-2020). Dissertação (Mestrado em História), Setor de Ciências Humanas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba. 2022.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

MIRANDA, Eduardo Oliveira. Corpo-Território & Educação Decolonial: proposições afro-brasileiras na invenção da docência. Salvador: EDUFBA, 2020.

SEBALD, W. G. Guerra Aérea e Literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

SEVERO, Fernanda. Espaço Arquitetônico e Espaço Turístico: memória, história e simulacros. Anais do II Seminário de Pesquisa em Turismo do Mercosul, 10 e 11 de setembro de 2004.

 
 
 

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