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Desterritório e Localismo

  • Foto do escritor: GEPPC
    GEPPC
  • 16 de jul. de 2024
  • 9 min de leitura

Desterritório e Localismo

O museu como vínculo de um lugar com muitos outros


Por Luciano Chinda Doarte*


"A acusação de que os museus por acaso fiquem ultrapassados não é uma espada na garganta, senão, de fato, o apontamento de uma função de enraizamento de um corpo coletivo nos acontecimentos, nas expressões, no passado e nas relações dele mesmo."

Sem título [mapa dos cabos subterrâneos], 2024, TeleGeography

Mapa digital, Reprodução: https://www.submarinecablemap.com/


Em 2019, a ONU News noticiou que “mais da metade da população mundial, ou 4,1 bilhões de pessoas, usam a internet […]”. Já em 2022, a mesma agência informou que “ao todo, existem 5,3 bilhões de usuários da internet no mundo […]”. No mesmo ano, o Insper noticiou em seu portal virtual, por meio de uma manchete, que “Mundo se aproxima da marca de 5 bilhões de usuários de internet, 63% da população”. Este salto, infere-se, pode ter sido apoiado pela pandemia da Covid-19 e a necessidade do suprimento de bens e serviços mínimos para uma vida enclausurada. É óbvio que, da mesma maneira, a pandemia do Novo Coronavírus acentuou desigualdades, apartando pessoas de serviços essenciais, como a comunicação virtual vem se tornando.


No ano de 2024, muitas notícias povoaram o tema das conexões virtuais e dos modos de interação, em especial no que diz respeito ao entretenimento e aos esportes eletrônicos. EM janeiro, a Agência Brasília, do governo distrital, informou que a capital nacional recebeu um campeonato nacional de jogos eletrônicos, com prêmio final de R$ 20mil. Já em maio do mesmo ano, a Prefeitura de Santos/SP noticiou que o próprio poder público inovou com um campeonato de videogames promovido pela municipalidade.


Sem juízo de valor, cabe, de início, apontar a existência factual de uma nova forma de elaboração cultural no mundo contemporânea: esta mesma das conexões eletrônicas e mediadas por avatares, nicknames, cabos e as condições sociais e materiais mínimas.


No mesmo contexto, insistentemente museus seguem suas atividades, com relações muito enraizadas em seus territórios e em suas gentes e, mesmo que de formas problemáticas, estes problemas estão amarrados aos seus imediatismos relacionais.

 

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Essa prática de conexões entre grupos e sujeitos com equivalentes em regiões geográficas distantes e, por consequência, de conteúdos culturais bastante diferentes entre si, exige uma leitura analítica consciente das inferências desses funcionamentos ainda não totalmente mapeados.


[…] a particularidade dessa cultura global requer uma abordagem que problematize a própria noção antropológica tradicional de cultura, a qual, em contexto de análise da globalização e de encontros/choques entre povos, tende a dispor uma anteposição dos prefixos multi, inter ou trans à palavra para descrever esses processos (AVANÇO; LIMA; NEIRA, 2021: 6).

Cabe pontuar que a própria noção de cultura, desde os anos 1970/1980, com a potencialização do chamado conceito antropológico, está, neste tempo, em rearranjo social e institucional, em especial no contexto brasileiro, com as legislações atualizadas a partir de 2023 após um período nefasto de negligência ao assunto.

 

A noção mais tradicional de cultura, quase que um senso comum entre pesquisadores e dedicados ao tema, entende que uma parte diz respeito às formas de organização, realização e manifestação da vida em coletividade, conformando regras, estéticas, saberes e fazeres. De outro lado, a ideia de cultura na busca mais passadista da noção aponta para o cultivo junto à terra, pela agricultura, pela manutenção material e manual das coisas para que em um futuro próximo se concretizem em outras, como alimentos, indumentárias, moradias, entre outros.

 

Aqui está, portanto, um ponto intrigante para o contemporâneo: a ideia de cultura mais tradicionalizada nos estudos e na filosofia aponta/apontava para uma relação mais íntima com uma materialidade mais imediata ao sujeito, seus pares mais próximos, outros sujeitos de suas comunidades e/ou sociedade, lugares e conhecimentos que circulam por este mundo próximo. Mas, no tempo cada vez mais acelerado no século XXI as relações socioculturais passam também a se dar em um mundo virtualizado que, ao mesmo tempo, oferece contatos internacionalizados e com comunidades e sociedades muito distantes.

 

Nas palavras do pensador Byung-Chul Han, este processo chamado globalização não só viabiliza contatos e interações, mas, isto sim, alterações no mundo “do real” das comunidades e sociedades:


A globalização de hoje é mais do que uma troca entre lugares. Que determinadas formas culturais de um lugar migrem ou se desloquem a um outro lugar, que um lugar influencie culturalmente um outro, não faz ainda a globalização. A globalização de hoje modifica o lugar enquanto tal. Ela o des-interioriza, toma-lhe a ponta que anima um lugar. Onde formas culturais de expressão se perdem, no processo de des-localização, de seu lugar original, levadas e oferecidas a uma justaposição hipercultural, a uma simultaneidade hipercultural, onde a unicidade do aqui e agora cede à repetição atópica […] (HAN, 2019: 66).

Subsidiariamente a este pensamento, aponta-se ainda outra ideia do mesmo filósofo que diz que as sociedades, com cada vez mais informações em produção e circulação sobre si e para si, se abarrota paulatinamente de um peso das informações. Ao mesmo tempo em que uma ideia de transparência é entendida de forma positiva, essa operação uniformiza as relações, as informações e as práticas.


Ela [a transparência] é uma coação sistêmica que abarca todos os processos sociais, submetendo-os a uma modificação profunda. Hoje, o sistema social submete todos os seus processos a uma coação por transparência, para operacionalizar e acelerar esses processos. A pressão pelo movimento de aceleração caminha lado a lado com a desconstrução da negatividade (HAN, 2017: 11).

Portanto, ao mesmo tempo em que muita informação é produzida, acessada e circulada de forma cada vez mais transparente, estas informações estão vinculadas a contextos cada vez mais interrelacionados de modo virtual e eletrônico. Óbvio que sem desconsiderar por completo o contexto imediato e as condições de vida material dos sujeitos em seus territórios. Todavia, entra no rol de temas assuntos que a poucos anos atrás jamais seriam considerados, dadas as diferenças e as distâncias morais, culturais e geográficas.

 

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Em seu Dicionário de Crítico de Política Cultural, Teixeira Coelho apresenta alguns conceitos interessantes para pensar o mundo social da atualidade. Duas são as ideias retiradas deste livro para pensar o trabalho dos museus em um mundo de conexões virtuais: desterritorialização cultural e localismo. Por desterritorialização cultural, Coelho diz que:


No estágio atual da indústria cultural, no interior do processo de globalização cada vez mais intensa de todo tipo de troca, modos culturais se separam de seus territórios de origem, eventualmente despem todo traço distintivo ligado a um território particular, e investem outros territórios do qual se propõem como representações adequadas (ou que assim são consideradas). Nessa operação, se diz desterritorializado tanto o modo cultural que investe um território de aportação quanto o modo cultural original assim deslocado (COELHO, 1997: 149).

Já acerca da ideia de localismo, o autor registra que se trata de “uma tendência de retorno ao particular, ao pequeno e ao diferente em oposição ao universal, ao grande e ao igual ou o que há de constante” (COELHO, 1997: 241). A isso, refere-se a um movimento concomitante ao de intensificação da globalização que retorna ao local, ao imediato, ao mais próximo, ao materialmente alcançável, o que, infere-se, diz respeito também aos saberes, fazeres e trocas subjetivas que acontecem entre os sujeitos em comunidades e sociedades.


O local é um espaço vivido, experiencialmente, como responsável pelo efeito de mundo, e simbolicamente (teatralizado), através das obras de cultura (como efeito de discurso); em contraste, o não-local é um espaço imaginário, vivido de modo duplamente mediado: simbolicamente e à distância. […] O localismo não é exatamente a negação da projeção, com a qual pode compor-se numa relação de tensionamento produtivo, mas não há como ocultar a evidência de que se trata de dois movimentos do espírito, ou da mente, de opostas direções (COELHO, 1997: 241-242).

De maneira afeita a essas ideias, defendi recentemente (DOARTE, 2023: 46) que os museus, sobretudo nos seus processos de elaboração, inauguração e manutenção de exposições produzem uma sensação chamada familiar alterizado, uma vez que os temas, em especial em um museu de história, podem ter teor de familiaridade a quem visita, dada exatamente a ideia de localismo, de um pretenso pertencimento e/ou de um fazer tornado tradicional ao mesmo tempo em que há certa alteridade, posto que os assuntos já não mais existem, podem estar temporalmente distantes e sequer fazer sentido para um sujeito do contemporâneo.

 

Dessa maneira, os museus atuam com uma produção familiar sobre o mundo imediato de seu entorno e igualmente criam discursos, reelaboram ideias, provocam os sujeitos sobre temas também diferentes, descontinuados, já passados de seu contexto e, por isso mesmo, colocados na caixinha do que já não tem utilidade.

 

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É muito comum neste avançado e ligeiro século XXI que apontamentos sobre o desinteresse popular pelos museus se dê, por exemplo, por certo papel e forma ultrapassados dessas instituições em nossos mundos contemporâneos. Apontam-se os dedos como eu cobrando uma atualização das entidades museológicas, mas sem encaminhar que atualidade seria essa.

 

A acusação de que os museus por acaso fiquem ultrapassados não é uma espada na garganta, senão, de fato, o apontamento de uma função de enraizamento de um corpo coletivo nos acontecimentos, nas expressões, no passado e nas relações dele mesmo.

 

Pode de fato que sejam demandadas atualizações urgentes, como nas formas de comunicação, para que recebam de maneira mais ampliada as tecnologias eletrônicas das telas que já parecem a extensão dos corpos humanos e, com isso, gerem outra sensação de ser e estar nesses espaços. Talvez, porventura, até mais afeitas à vida atual, tão tecnológica.

 

Outra demanda de atualidade pode ser sobre os temas e as formas de narrá-los, como, por exemplo, novas epistemologias sobre populações politicamente vulnerabilizadas e minorizadas, como afro-brasileiros, mulheres, grupos LGBTQIAPN+, indígenas, entre outros.

 

Entretanto, o que se quer registrar no pensamento apresentado é que exatamente cabe aos museus (entre outras coisas) essa atividade de enraizar um povo em si mesmo. É claro que não se deve ver esse movimento com romantismo, como se essas ações institucionais fossem plenas em si e totalmente respeitosas à diversidade cultural. Basta sermos brasileiros e minimamente atentos à cultura, às artes e à política para perceber que mesmo pelas belas cores e pelas formas poéticas mais rebuscadas, violências podem ser perpetradas e mantidas.

 

Mas, tendo em vista sempre o risco da essencialidade e da violência prática e simbólica, há de se reconhecer que a <<teimosia>> dos museus em temas que muitas vezes não estão no cotidiano das conversas de botequim garante exatamente que seja cumprido o seu papel de preservação de cargas simbólicas e patrimônios materializados em seus acervos.

 

A preservação, bem como os saberes transmitidos e pesquisados e expostos é que viabilizam que em um mundo tão desterritorializado pela sociedade de cultura globalizada (portanto, de uma cultura de nível global e genérico), certo localismo seja mantido. Alguém há de puxar para baixo, para a terra e para fincar os pés nela as conversas e imagens da nuvem, das nuvens, dos bytes.

 

Só os museus hão de fazê-lo? Não. Mas que estes são espaços potentes para isso, isto sim. Está nos museus e, em especial, quanto menor seu porte e mais imediato seu alcance social, ainda mais forte a possibilidade. Em um município de trinta, cinquenta, cem ou duzentos mil habitantes, já profundamente alterados em seus modos pela hipercultura, como apontou Han, os museus, como espaço do encontro coletivo, podem fincar de novo os pés das gentes naquela terra que lhes é comum.

 

Ao passo disso, também são os museus grandes detentores da oportunidade de dar em conta-gotas a desterritorialização, apresentando saberes, formas e nomes exóticos a algum localismo. São eles que conseguem (sob o risco permanente de fetichizar, e por isso o cuidado ético das atividades é vital) inserir em ambiente <<controlado>> (sic) coisas, bens e cacarecos que não pertencem àquelas pessoas, àquela terra específica, mas que existem no mundo.

 

Por existirem no mundo, os museus, como espaços de conhecimento, pesquisa e difusão do saber podem apresentar em um sentido de vitrine o mundo exterior (sic), o que ajuda, inclusive, infere-se, a enraizar o localismo de um território, criando identidades culturais por alteridade, ética e interculturalidade.


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* Luciano Chinda Doarte é historiador, professor e um dos coordenadores do Grupo de Estudos e Pesquisa em Patrimônio Cultural (GEPPC). Atualmente é Diretor do Museu Municipal Atílio Rocco, em São José dos Pinhais/PR.


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REFERÊNCIAS


AVANÇO, Leonardo Dias; LIMA, José Milton de; NEIRA, Marcos Garcia. Formação da Identidade em Âmbito Hipercultural: corporeidade e filosofia. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 37. 2021. P. 1-13.

COELHO, Teixeira. Dicionário Crítico de Política Cultural. São Paulo: Iluminuras, 1997.

HAN, Byung-Chul. Sociedade da Transparência. Rio de Janeiro: Vozes, 2017.

HAN, Byung-Chul. Hiperculturalidade: cultura e globalização. Rio de Janeiro: Vozes, 2019.

INSPER. Mundo se aproxima da marca de 5 bilhões de usuários de internet, 63% da população. Insper notícias, 15 fev. 2022. Disponível em: <https://www.insper.edu.br/noticias/mundo-se-aproxima-da-marca-de-5-bilhoes-de-usuarios-de-internet-63-da-populacao/>. Acesso em: 10 jul. 2024.

MIRANDA, Thaís. Brasília recebe campeonato nacional de jogos eletrônicos. Agência Brasília, 21 jan. 2024. Disponível em: <https://www.agenciabrasilia.df.gov.br/2024/01/21/brasilia-recebe-campeonato-nacional-de-jogos-eletronicos/>. Acesso em 11 jul. 2024.

ONU. Estudo da ONU revela que mundo tem abismo digital de gênero. ONU News, 06 nov. 2019. Disponível em: <https://news.un.org/pt/story/2019/11/1693711>. Acesso em 09 jul. 2024.

ONU. Crescimento da internet desacelera e 2,7 bilhões ficam fora da rede. ONU News, 16 set. 2022. Disponível em: <https://news.un.org/pt/story/2022/09/1801381>. Acesso em 09 jul. 2024.

PREFEITURA DE SANTOS. Vila criativa de Santos realiza campeonato de videogame. Inscrições estão abertas. Prefeitura de Santos, 21 mai. 2024. Disponível em <https://www.santos.sp.gov.br/?q=noticia/vila-criativa-de-santos-realiza-campeonato-de-videogame-inscricoes-estao-abertas>.

 
 
 

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