Breve fenomenologia do patrimônio e do(s) centro(s)
- GEPPC
- 10 de jun. de 2020
- 8 min de leitura
Breve fenomenologia do patrimônio e do(s) centro(s)
A centralidade física e simbólica no patrimônio e suas periferias
Por Luciano Chinda Doarte*
“Promessa desde a década de 1980 [...], a execução tem encontrado não só barreiras como pouquíssimo prestígio de quem a pode fazer valer.”

Sem título, s.d., Ana Pinho
10 cm X 50 cm, óleo sobre tela, coleção particular
O trabalho sem nome de Ana Pinho alude de maneira visual rápida, senão automática, especialmente para as pessoas que já formaram imaginativamente a estética de um modelo específico de periferia, às favelas cariocas: típica forma de periferia vertical há muito disseminada em programas e reportagens nas diferentes formas de mídia. Há, claro, outras formas geofísicas de periferias, mas as favelas em morros no Rio de Janeiro talvez sejam o modelo nacional do Brasil. Há, ainda, que se considerar a diferença feita pelos urbanistas e outros técnicos entre periferia e favela, mas tomo aqui como periferia, ciente da separação conceitual, aquilo que não é central tanto geográfica quanto simbolicamente.
Começo essa narrativa lembrando que o patrimônio cultural em suas variadas tipologias é um fenômeno muito mais central que periférico e, ao mesmo tempo, apontando que não é mero acaso que museus de história, por exemplo, estejam localizados em prédios históricos. Apesar de caminharmos para uma maior abstração das noções de patrimônio, ele ainda se vincula muito a uma ideia de centro que de periferia. Por diversas razões, isso explica, em parte, porque um centro cultural se chama centro cultural.
A questão do centro e da produção cultural é contemporânea do surgimento do patrimônio e dos museus no mundo moderno. A valorização do passado pelos “testemunhos” ainda firmes nos centros urbanos em diferentes escalas é um modelo de longa duração nas atividades patrimoniais, ainda em um modo do patrimônio ensimesmado, ainda sem uma preocupação com seus contextos, como cita Fançoise Choay, mas apresentam-se como frutos de seu tempo:
A cidade, o centro ou o bairro urbano museais [...], impõem-se, ao contrário, por si mesmos, como totalidades singulares, independentemente de seus componentes (CHOAY, 2017: 192).
O foco que dou aqui é que na produção patrimonial, há muito tempo, há um endosso da urbanização, do espaço central das cidades, da construção que configura uma cidade e, menos, apesar dos esforços desde a década de 1980, do que está para além desse espaço. A elevação de Ouro Preto/MG ao patamar de monumento nacional em 1938, os tombamentos de igrejas e casarões durante o século XX brasileiro são amostra disso. O patrimônio guarda íntimas relações com o meio urbano, com o centro das cidades, não com a periferia. Da mesma forma, se pensarmos que os centros históricos das cidades, comuns polos de produção e experiência cultural, ficam nos centros das cidades, apesar de muitas vezes não serem mais os centros econômicos – mas costumam estar próximos deste segundo centro –, dado que as elites que tinham capital para habitar o centro o abandonaram “em busca de mais ordem, silêncio e tranquilidade” (SILVA, 2014: 173), temos outro exemplo. Também, boa parte das coisas tornadas patrimônio estão em espaços de centro: centro geográfico, político, econômico, cultural, histórico, de poder, como os casarões dos barões cafeeiros ou ervateiros do Brasil.
Guardadas as devidas proporções, o patrimônio é mais comumente encontrado em centros que em periferias, além de que, uma vez patrimônio, tornar-se ele mesmo um centro. Em comparação com Curitiba/PR, por exemplo, Foz do Iguaçu/PR é menos centro que a capital, mas em seu contexto, Foz do Iguaçu tem seu centro e sua produção de centralidade simbólica. Centro é, assim, um espaço que consolida uma hegemonia sobre algo (LIMA, 2015: 14), sobre algum tema, e que tem estratégias tais para a manutenção de seu espaço de privilégio.
O que não podemos esquecer é que o valor simbólico atribuído ao centro e à periferia é muito distinto nos padrões também simbólicos de dignidade, visibilidade e valoração. A distância para com o centro não dá automaticamente o tom do que é periférico, mas ajuda a formar a ideia congregado com outras diferenças que:
[...] pelas condições sociais de vida que evidenciam nítida desigualdade entre os moradores dessas regiões da cidade (ULTRAMARI; MOURA, 1996: 10).
Nesse sentido, morar, conviver, produzir e consumir, aproveitar, estar e permanecer em espaços centrais ou periféricos parecem trazer em si valorações simbólicas diferentes. Como apontam Clóvis Ultramari e Rosa Moura acerca da moradia, “onde você mora é muitas vezes mais importante do que em que você mora” (ibid., p. 63), e nos basta sermos brasileiros para entendermos isso. Sendo a periferia um modelo diferente do modelo do centro, é curioso e no mínimo instigante pensarmos como e por que os centro de cultura estão mais nos centros que nas periferias, e valorizando mais os temas e os modos do centro que das periferias.
Prédios tornados icônicos também, sejam patrimônio no sentido cultural ou não, no mais das vezes estão nos centros e não nas periferias desses centros, o que também nos leva a questionar o jogo de valoração simbólica uma vez que sabemos que é comum para as cidades essa produção que gera identificação por meio dos prédios de sublinhado estigma, e:
“[...] não basta construí-los, eles precisam ser absorvidos e consagrados pela comunidade [...]” (ULTRAMARI; et. al., 2014: 80).
A consagração dos ícones eleitos por parte da comunidade são um pensamento de outro departamento, pois, exigem um momento próprio uma vez que sua complexidade é também de grande envergadura.
Essa fenomenologia da relação patrimônio cultural-centro pode ser observada, por exemplo, no número de bens patrimonializados no estado do Paraná, de acordo com as informações online da Secretaria da Comunicação Social e da Cultura, já defasados em 15 anos. O Paraná tem 399 municípios. Destes, 44 têm patrimônio da esfera estadual em seus territórios. Os números são indicadores profundos da desigualdade entre centro e periferia nessa escala porque: Curitiba, a capital do estado, tem 58 bens tombados; Paranaguá, a cidade mais antiga do estado e que fica na região litorânea, tem 24 bens tombados, em segundo lugar na lista. Depois destas cidades, três têm 8 bens tombados; uma tem 7; duas têm 5; uma tem 4; cinco têm 3; quatro têm 2; e vinte e seis têm 1 bem tombado na esfera federal. Portanto, a capital, símbolo de urbanização e de centralidade estadual, tem em seu território quase 35% dos patrimônios estaduais, segundo os dados de 2005.
Outro exemplo dessa fenomenologia pode ser lida em outra escala: a própria cidade de Curitiba. A Linha Turismo que é muito frequentada por turistas e que passeia pelos principais pontos da cidade, se desloca 7,5km para ir da Praça Tiradentes, marco zero de Curitiba, até o bairro Santa Felicidade, núcleo da imigração italiana na região, por ruas devidamente urbanizadas, asfaltadas, sinalizadas e ordenadas, ao passo que não se desloca 12km do mesmo marco zero para alcançar a Praça Zumbi dos Palmares, no bairro Pinheirinho, que é nada central. Os caminhos e as condições de mobilidade para a Praça Zumbi dos Palmares não são tão bem ordenados quanto para Santa Felicidade. Essas constatações por si denotam eleições entre que espaços não-centrais serão privilegiados ou não, além de sublinhar como o poder constituído pode produzir noções de periferias variadas dentro de uma mesma escala. Claro, nesse exemplo há um fato essencial a se considerar: em um caso falamos de imigrantes italianos, noutro de uma homenagem a um ícone da luta negra brasileira pró-abolicionista – o que também merece atenção própria.
Por fim, cumpre salientar duas coisas: a intimidade entre o patrimônio cultural e as noções táteis e subjetivas de centralidade e, após ter demonstrado isso e em nome da saúde democrática, defender a descentralização desse modelo moderno. O Brasil experimentou nos primeiros anos do século XXI propostas de descentralização da produção cultural, mas estas nem passavam perto de receber o mesmo prestígio que os museus e patrimônios consolidados. Sobre a necessária descentralização, Gilberto Velho defendeu:
Há que valorizar, por outro lado, a importância de ter atividades culturais significativas em diversos pontos do país. O pluralismo democrático é a razão fundamental para se evitar mais uma etapa do processo de centralização autoritária. A partir de uma particularidade de trajetória e história de cada região e cidade, temos um somatório de diversidades que só enriquece o patrimônio cultural da nação (VELHO, 2002: 170).
Descentralizar, oportunizar as mesmas chances a diferentes regiões, é pensar tanto formas diferentes de valoração quanto ofertar o mesmo prestígio para prédios centrais centenários e casas de operários em bairros longe do centro histórico e/ou econômico. Isso não me surge como possível quando o fetiche não está no modo, mas na coisa, porque se nos preocupamos mais com patrimonializar uma casa centenária do que com as potências de inscrição cultural que uma patrimonialização tem em si, logicamente os centros e os espaços mais bem preparados, ordenados e urbanizados seguindo a forma moderna de vida citadina terão muito mais chances de produzirem patrimônio que uma periferia ou uma favela na qual uma residência muito, muito dificilmente vai alcançar um século de existência.
Em espaços em que a relação com a residência é ordinária, é funcional, como em uma periferia que encontra alta rotatividade de moradores e também moradias indignas sem o mínimo de estrutura segura e conforto, a valoração de uma casa para vir a ser patrimônio é quase impossível. Já em locais em que palacetes e outras formas de morar encontram melhores condições e, por isso, podem estabelecer laços de afeto e leituras estéticas para além da funcionalidade, há muito mais oportunidades de se ver ali surgir pelo rito jurídico-estatal um patrimônio. Novamente: não é à toa que museus são encontrados em palacetes tombados. Por que grandes referências culturais não são vistas nas periferias da mesma forma?
Olhando para a pintura de Ana Pinho, o patrimônio muito provavelmente está na cidade que aparece ao fundo do morro, coroando a obra, com seus tons de cinza e suas silhuetas de edifícios, e não nas vielas de chão batido entre as moradias quase sempre provisórias de materiais pouco resistentes. É por isso que a descentralização e a consideração em igualdade dos diferentes espaços têm de se dar como política de Estado. Mais uma vez ele, Gilberto Velho aponta:
O patrimônio é da nação, logo deve ser objeto de discussão e diálogo entre os atores interessados [o todo democrático brasileiro]. O papel do Estado é indispensável, mas tem de ser aperfeiçoado, sob o risco de desgaste e desmoralização (VELHO, 2002: 184).
Promessa desde a década de 1980 tanto do campo político da Redemocratização do Brasil quanto nos entendimentos teóricos do patrimônio e da Museologia, a execução tem encontrado não só barreiras como pouquíssimo prestígio de quem a pode fazer valer. Até lá, casarões do baronato são feitos patrimônio sob o manto do interesse público e o público que o consuma e aceite como tal porque alguém – a tecnocracia imbuída de autoridade – disse que assim o é. E em casos de o público não querer consumir esses ícones seletos, serão reiterados os erros inférteis da educação patrimonial doutrinária sob o véu do lúdico e do exótico tentando moldar sensações de pertencimento tão artificiais quanto inúteis.
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* Luciano Chinda Doarte é professor, historiador e um dos coordenadores do Grupo de Estudos e Pesquisas em Patrimônio Cultural (GEPPC).
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REFERÊNCIAS
DOARTE, Luciano Chinda (org.). Nem Tudo Para Todos: estudos sobre patrimônio cultural e violências no mundo contemporâneo. Curitiba: Instituto Memória. Centro de Estudos da Contemporaneidade, 2020.
LIMA, Marcos Costa. As Teorias do Desenvolvimento: a propósito dos conceitos de centro e periferia. SÉCULO XXI, Porto Alegre, V. 6, Nº1, Jan-Jun 2015. P. 13-24.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o Autoritarismo Brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
SILVA, Armando. Imaginários: estranhamentos urbanos. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2014.
ULTRAMARI, Clóvis; MOURA, Rosa. O Que É Periferia Urbana. São Paulo: Brasiliense, 1996.
ULTRAMARI, Clóvis; DUARTE, Fábio; DUDEQUE, Irã Taborda; GNOATO, Salvador. O Olho do Inseto: ensaios sobre a cidade. Curitiba: Editora Champagnat, 2014.
VELHO, Gilberto. Mudança, Crise e Violência: política e cultura no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
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