Caquistocracia como forma de governo
- GEPPC
- 23 de abr. de 2020
- 7 min de leitura
Caquistocracia como forma de governo
O IPHAN-RJ e mais um capítulo da antologia caquistocrática brasileira
Por: Felipe Augusto Tkac*

Saturno (conhecida como Saturno devorando seu filho), Francisco de Goya y Lucientes, 1820-1823, d. 143.5 cm x 81.4 cm. Técnica mista em revestimento de parede transferido para tela. Museu del Prado, Espanha.
Há pouco mais de dois anos, em 13 de abril de 2018, o ex-diretor da CIA John Owen Brennan escrevia no Twitter uma mensagem ao presidente americano Donald Trump que trouxe à política contemporânea um termo que gerou uma corrida aos dicionários. O termo em questão: kakistocracy (em português, s. f. caquistocracia). E, para evitar uma corrida aos dicionários, o termo vem do grego κᾰ́κῐστος (kákistos) superlativo de κακός (kakós)** que pode ser traduzido como “mau” ou “ruim” e κράτος (krátos) que usualmente é traduzido como “poder” ou “força” e serve de sufixo comum nos termos políticos que tanto conhecemos e falamos. A definição do termo pelo Cambridge Dictionary é diplomática: um governo que é governado pelas pessoas menos adequadas, capazes ou experientes em um estado ou país. Mas, de maneira geral encontramos a definição como “o governo dos piores”.
Quanto ao termo no debate político, o registro escrito que se têm da primeira vez que ele fora usado remonta à Guerra Civil Inglesa (1642-1651). Mas, há quem afirme que o termo pode ser atribuído à Políbio. No caso inglês, fora mais especificamente o sermão de Paul Gosnold ao Parlamento do Rei*** – reunido em Oxford – em 09 de agosto de 1644.Gosnold discursara em defesa da monarquia, mas, por mania historiadora, vale a pena ler um trecho de seu sermão onde o termo em questão aparece:
If the peace-makers be blessed, for they shall be called the sonnes of God; then cursed are the warre-makers, cursed to the pit of hell, for they shall be called you know what: if there be any devils upon earth, these are they; as like their father, as if they had beene spit out of his mouth, who was a lyar, and a murderer from the beginning. Therefore we need not make any scruple of praying against such: against those Sanctimonious Incendiaries, who have fetched fire from heaven to set their Country in combustion, have pretended Religion to raise and maintaine a most wicked rebellion: against those Nero's, who have ripped up the wombe of the mother that bare them, and wounded the breasts that gave them sucke: against those Cannibal's who feed upon the flesh and are drunke with the bloud of their own brethren: against those Catiline's who seeke their private ends in the publicke disturbance, and have set the Kingdome on fire to rost their owne egges: against those tempests of the State, those restlesse spirits who can no longer live, then be stickling and medling; who are stung with a perpetuall itch of changing and innovating, transforming our old Hierarchy into a new Presbytery, and this againe into a newer Independency; and our well-temperd Monarchy into a mad kinde of Kakistocracy. (GOSNOLD, 1644, pp. 17-18)
[Se os pacificadores forem abençoados, pois serão chamados filhos de Deus; então amaldiçoados são os fazedores de guerra, amaldiçoados para a cova do inferno, pois serão chamados de você sabe o que: se há demônios na terra, estes são eles; são como seu pai, como se tivessem sido cuspido da boca dele, que era mentiroso e assassino desde o início. Portanto, não precisamos fazer nenhum escrúpulo em orar contra isso: contra os incendiários santificantes, que buscaram fogo do céu para pôr em combustão seu país, fingiram que a religião levaria e manteria uma rebelião mais perversa: contra estes Neros, que rasgaram o ventre da mãe que os deu à luz e feriu os seios que os amamentaram: contra os canibais que se alimentam da carne e estão bêbados com o sangue de seus próprios irmãos; contra os catilinos que buscam seus fins particulares na perturbação pública; e incendiaram o Reino para fritar seus próprios ovos: contra as tempestades do Estado, aqueles espíritos inquietos que não podem mais viver, então ficam grudados e se intrometendo; que estão picados com um desejo perpétuo de mudar e inovar, transformando nossa antiga Hierarquia em um novo Presbitério, e isso novamente em uma Independência mais nova; e nossa bem-humorada Monarquia, em um tipo louco da Kakistocracia. (GOSNOLD, 1644, pp. 17-18, tradução minha)]
O uso do termo por Gosnold é claramente conservador, acusando a irrupção anti-monarquista de ser o próprio trabalho do diabo, da gênese da kakistocracy. O termo voltaria a ter repercussões políticas após e fora da Inglaterra em polvorosa, e, de maneira geral, era levantada por interlocutores temerosos de mudanças – usualmente democráticas – e conservadores em defesa da manutenção de privilégios aristocráticos até o século XIX, já no século XX apareceu colado a significados de corrupção política – significado residual que ainda permanece.
Mas, retornemos à mensagem de J. O. Brennan no Twitter. Sua menção ao termo do século XVII e o ataque ao presidente Republicano fora diferente desta vez. Que Sérgio Rodrigues resumiu em sua coluna na Folha de S. Paulo:
Ronald Reagan foi acusado de liderar uma “kakistocracy”. Barack Obama também. Pouca gente ligou. A etiqueta desonrosa só foi colar em Trump: a lei da adequação entre palavra e coisa é implacável.
Ainda outro jornalista, desta vez publicado em um periódico das terras lusas no ano de 2018, o colunista João Almeida Moreira escreveu, após discorrer sobre a caquistocracia:
Nos meses que faltam para 2018 terminar, além de Trump continuar seguramente a dar motivos para a propagação da palavra, há ainda um evento marcado para outubro capaz de solidificar a sua difusão global: as eleições brasileiras.
E, apesar de ele estar referindo a caquistocracia aos desmandos do governo Michel Temer, de membros e aliados do seu partido, o MDB, Moreira acertou quanto as eleições brasileiras de 2018. À época, outros também escreveram sobre a relação de caquistocracia e corrupção, principalmente após o impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 2016.
Entretanto, após o nosso marco cronológico escolhido aqui, o senhor Brennan, caquistocracia sofreu não só uma sobrevida mas um golpe de significado, que André Spicer escreveu:
But it has been the election of Donald Trump to the US presidency that has driven a wider revival of use of the word. On the eve of Trump’s inauguration, the economist Paul Krugman warned: “What we’re looking at, all too obviously, is an American kakistocracy.” Six months into the presidency, the political scientist Norm Ornstein documented how constant waves of scandals around the White House led him to conclude that “kakistocracy is back, and we are experiencing it firsthand in America”.
[Mas foi a eleição de Donald Trump para a presidência dos EUA que levou a um renascimento mais amplo do uso da palavra. Na véspera da inauguração de Trump, o economista Paul Krugman alertou: "O que estamos vendo, obviamente, é uma kakistocracia americana". Seis meses presidência adentro, o cientista político Norm Ornstein documentou como as constantes ondas de escândalos ao redor da Casa Branca o levaram a concluir que "a kakistocracia está de volta, e estamos experimentando isso em primeira mão na América".]
Jair Bolsonaro, que fala e deseja – em um nível patológico-submisso – ser igual a Donald Trump, desta vez, pode ficar contente que ninguém sensato e inteligente deixaria de colocá-los juntos na prateleira decrépita da história política de nosso tempo como “os caquistocráticos”! O que não é novidade. Esse novo viés que o conceito caquistocracia vem adquirindo, então, gera aderência a termos não só relacionados à corrupção política mas – e cada vez mais – a termos como incompetência e amadorismo.
É o que nos leva ao Rio de Janeiro de abril de 2020. Mês que o mundo atravessa uma pandemia, sistemas de saúde lutam para contê-la, estruturas econômicas desmoronam e a política brasileira se solidifica na fundação da emergente (re)definição da caquistocracia. O capítulo da vez: a nomeação de Monique Baptista Aguiar para atuar na Superintendência do IPHAN-RJ. Uma turismóloga – e também atriz – que não possuí experiência profissional e muito menos acadêmica – não há registro de seu currículo Lattes, mandatório para pesquisadores no Brasil. Ela irá gerenciar um escritório regional do IPHAN e todos os seus servidores, estes aprovados em concursos exigentes e concorridos.
Tal cargo tem como característica legal a nomeação, portanto, não depende de concurso público. Entretanto, sempre há a expectativa – e diríamos, a honestidade – de indicar uma pessoa para gerir tal órgão federal que carregasse consigo uma bagagem profissional e acadêmica sólida e consolidada – ou pelo menos equivalente ou superior aos servidores que será responsável. Isto é: o já arranhado “critério técnico”. Essa relação entre eufemismo de discurso vazio e caquistocracia que tomou conta do termo “critério técnico” já foi muito bem explicada pelo texto A “Indicação Técnica” (sic) para o Patrimônio Cultural Carioca: Mais uma força na marcha à ré da Res publica brasileira de Luciano Chinda Doarte, neste mesmo blog. Sendo assim, nos resta pontuar mais este capítulo como parte da antologia caquistocrática brasileira, um conjunto da mediocridade.
Essas novas matizes de significado político de caquistocracia estão ligadas às formas contemporâneas de governos dessa “nova” extrema-direita mundial e seus Neros (Trump, Orbán, Modi, Duterte, Bolsonaro, Netanyahu etc.) mas o caso da nossa república não deixa a desejar em relação a caótica Rússia pós-soviética. Spicer em seu já mencionado artigo no The Guardian escreveu que:
The term kakistocracy has also been used to described the toxic mix of organised crime, self-interested oligarchs and a dysfunctional state in Russia during the Yeltsin era.
[O termo kakistocracia também foi usado para descrever a mistura tóxica de crime organizado, oligarcas interessados em si e um estado disfuncional na Rússia durante a era Yeltsin.]
O desejo patológico-submisso de Bolsonaro se enxerga no espelho como a versão tropical de Trump, mas, talvez, em seu verdadeiro rosto esteja costurado a face do ébrio e velho Yeltsin.
* Felipe Augusto Tkac é historiador, professor e um dos coordenadores do Grupo de Estudos e Pesquisas em Patrimônio Cultural (GEPPC).
** Conferir: LIDDELL, H. G. SCOTT, R. A Greek-English Lexicon. Revised and augmented by Sir Henry Stuart Jones. With the assistance of Roderick McKenzie and with the cooperation of many scholars. Oxford: Clarendon Press, 1996, p. 868, coluna da esquerda.
*** King’s Parliament, parlamento constituído pelos lealistas do Rei Carlos I em Oxford, não confundir com o Parlamento Inglês, este, inimigo da monarquia na Guerra Civil Inglesa.
REFERÊNCIAS
GOSNOLD, Paul. A SERMON Preached at the PUBLIQUE FAST the ninth day of Aug. 1644. At St Maries OXFORD, BEFORE The honorable Members of the two Houses of PARLIAMENT, There Assembled. By PAUL GOSNOLD Master of Arts. And published by Authority. Oxford: Printed by Henry Hall, [1644]. Disponível aqui: <http://tei.it.ox.ac.uk/tcp/Texts-HTML/free/A41/A41582.html>. Acesso em: 20 de abril de 2020.
LIDDELL, H. G. SCOTT, R. A Greek-English Lexicon. Revised and augmented by Sir Henry Stuart Jones. With the assistance of Roderick McKenzie and with the cooperation of many scholars. Oxford: Clarendon Press, 1996.
Kommentarer