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Consumir cultura e viver em sociedade

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    GEPPC
  • 6 de mai. de 2020
  • 8 min de leitura

Consumir cultura e viver em sociedade

O Brasil e sua elite não-burguesa

Por Luciano Chinda Doarte*

“A elite brasileira está muito longe de cultivar a si no sentido de consumo de cultura e de preocupação com o tema.”

The Bookworm, [1850], Carl Spitzweg

48,3 cm X 26, 7 cm, óleo sobre tela, Grohmann Museum at Milwaukee School of Engineering


A obra de Spitzweg mostra o que de fato mostra: um homem envolto em sua biblioteca, segurando muitos exemplares enquanto parece ler com afinco um dos livros, numa atmosfera de conhecimento e reclusão. O nome original, dado pelo autor, seria Librarian, mas o público oitocentista o chamou The Bookworm de maneira irônica e talvez um tanto pejorativa – não a obra em si, mas o que ela traz representado. O homem com uma idade avançada, dados os cabelos brancos, usa as roupas que no pré-Revolução Francesa denotavam alguma posição superior nas estratificações sociais (como as calças presas nos joelhos). A biblioteca, com sua decoração rococó anunciada nas paredes acima das estantes, também ajuda a demonstrar o estrato social de pertencimento do homem, uma vez que ainda hoje com os avanços democráticos de acesso ao saber, quiçá no ambiente anterior aos pressupostos democráticos republicanos, o espaço para a guarda de livros e estudos não é encontrado em quaisquer residências.


Estando em cima de uma escada e acessando o conhecimento que física e simbolicamente está no alto, mais alto que o reles chão no qual todos pisam, está também mais alto que o globo no canto inferior esquerdo, representação do espaço no qual as coisas da vida real se dão enquanto nosso homem se ocupa mais do desenvolvimento de si pelo conhecimento. Lendo "Metafísica" (Metaphysik), como identifica a placa no alto da estante, e talvez sua pergunta tradicional sobre o que se pode de fato saber, quer esteja entendo quer não – dúvida possibilitada pela feição de esforço no rosto do homem, o que, por sua vez, foi identificado como uma alusão sutil a sátiras leves das obras do período Biedermeier (BERNSTEIN, 2004: 163) –, ele está em uma certa aura de intelectualidade, de introspecção, de cultivo de si, de estudo, de leitura, do que convencionamos chamar na atualidade de consumo cultural. Parando por aqui a análise da obra, é a partir disso que seguirei.


A imagem de uma figura culta, que cultiva a si, é antiga. Podemos encontrar esforços nesse sentido desde a filosofia grega clássica. Nos basta lembrar de Platão. Ou das esculturas com os físicos humanos impecavelmente bem detalhados em sua melhor forma. A figura culta pré-revolucionária de pessoas da nobreza ou da corte foi ocupada pela burguesia que tomou o poder. O caráter colado à cultura muito presente é o financeiro, a posse material. A quantidade de livros e de pinturas que se possuía era denotativo do quão culto era seu proprietário. Sabemos que uma coisa não leva necessariamente a outra, mas o que bastava no período era a imagem social produzida e mantida.


Intentando uma leitura não-marxista mesmo com a denúncia das estratificações sociais, retomo o conceito de capital cultural forjado por Pierre Bourdieu, em seu trabalho publicado com Jean-Claude Passeron . De antemão, reconheço as críticas feitas ao conceito como a falta de clareza e, especialmente, por este parecer excessivamente determinista ao ser cunhado por Bourdieu quando escreveu sobre as escolas e os estudantes franceses na década de 1960. Entretanto, me valho deste conceito apenas para melhor demarcar uma das formas de entendimento sobre essa forma de capital não financeiro nem social que os indivíduos podem possuir, e porventura possuem em seus contextos mais variados à revelia de formas deterministas.


O capital cultural leva em consideração toda a sorte de conteúdos, aprendizados, práticas, propriedades e outras cargas simbólicas e, segundo o autor:

Sabe-se [...] que a acumulação inicial do capital cultural - condição da acumulação rápida e fácil de toda espécie de capital cultural útil - só começa desde a origem, sem atraso, sem perda de tempo, pelos membros das famílias dotadas de um forte capital cultural; nesse caso, o tempo de acumulação engloba a totalidade do tempo de socialização (BOURDIEU, 1979: 76).

Em seu estado incorporado o capital cultural se refere justamente ao corpo do indivíduo e ao exercício dele, e somente dele, de paulatinamente inculcar em si saberes culturais. O saber adquirido se torna, então, parte do corpo do indivíduo, é dissociável da carne, é intransmissível por venda, doação ou troca. A assimilação dos saberes que passam a fazer parte do indivíduo de forma intrínseca não pode ser imediata, pois, é consolidada aos poucos pela convivência e pelas trocas simbólicas, pelos aprendizados e pelas repetições de modos culturais aos quais o sujeito está inserido (ibid.: 75). No estado objetivado o capital cultural se caracteriza pela materialidade do que se pode entender como propriedade de temas, assuntos e itens culturais. Monumentos, livros, obras de arte, indumentárias, joias e toda a sorte de objetos que consolidem em materialidade as cargas simbólicas culturais de um grupo e/ou de um indivíduo. Esses bens podem ser transmitidos de um indivíduo para outro, dada justamente a sua materialidade, mas isso não garante diretamente que o receptor terá também os saberes incorporados em si pela transmissão, porque posse e aprendizado não são automaticamente partícipes do mesmo momento (ibid.: 77). Por fim, no estado institucionalizado o capital cultural se caracteriza pela competência acadêmica adquirida conscientemente pelo indivíduo, tal como um diploma universitário que habilita e possibilita a alguém atuar em alguma área do saber por meio de sua profissão.


Na leitura de Bourdieu, essas conformações culturais em relação aos indivíduos possibilitam alguma mobilidade social ou bases para a atuação nas lutas travadas entre sujeitos e grupos no espaço público, justamente porque para ele a situação se desenvolve em torno da dominação de uma classe sobre outra e:

[...] por isso a importância das estruturas simbólicas (como a cultura) como exercício da legitimação de um grupo sobre os outros (CUNHA, 2007: 504).

Isto posto, temos que o consumo de cultura, além de gerar benefícios ao sujeito consumidor, por diferentes motivos e formas, dá a ele também munição para agir nos jogos sociopolíticos do cotidiano. Nesses jogos será cobrado do indivíduo saberes e posicionamentos que podem ser mais respeitados por terem mais fundamento, mais rapidamente ocupados e mais ricos em complexidade caso ele possua um capital cultural, uma carga simbólica de saberes maior e diversa. Quem possuir maior capital cultural muito provavelmente adquirirá também uma maior respeitabilidade social, prestígio dos pares.


Historicamente, a elite do caso francês pós-revolucionário, figurada pela burguesia, não detinha apenas a maior parte do capital financeiro face aos outros grupos de sua sociedade. Estes detinham também o capital cultural e, como o financeiro, administravam-no em sociedade, em público, colocando sobre ele, inclusive, o caráter de interesse público. Um dos exemplos disso é a ação de homens eruditos em favor da definição de antiguidade como conhecemos hoje mesmo antes da Revolução Francesa e do Iluminismo, e que posteriormente fora apropriada pela burguesia, feita por pessoas que figuravam nesta constituição de elite. No caso específico da preocupação com antiguidade o beneditino Bernard de Montfaucon e o barão Guillaume de Crassier, que trocaram correspondências por 27 anos sobre o assunto (CHOAY, 2007: 65); documentos estes publicados na metade do século XIX na Bélgica (CAPITAINE, 1855).


Atualmente, no Brasil, não parece possível que um grande industrial ou que um proprietário de uma fortuita rede de lojas de qualquer tipo consiga ocupar o espaço simbólico de culto ou de gestor da cultura pública como tal, para além de possuir capital financeiro. Dessa forma, há uma forma de elite muito diferente tanto da pré-revolucionária quanto da pós-revolucionária, uma elite sem conhecimentos de cultura, uma elite voltada aos valores monetários e somente a eles, e não mais aos valores simbólicos e complexos das artes e da cultura como um todo. É muito pouco possível sequer imaginar o proprietário de uma enorme rede de lojas de departamento ou o proprietário de uma disseminada loja de roupas ou ainda um rentista debatendo sobre a teoria da cultura, sobre os paradigmas da arte, sobre a função social de um museu ou sobre o conceito contemporâneo de patrimônio cultural. E essa pontuação não se dá como tentativa de desprestígio dessa elite por si, mas sim como intenção de perceber o esvaziamento da subjetividade cultural no padrão estabelecido de vida talvez invejável. O desprezo da cultura concomitante ao endosso das finanças da elite atual se tornam um padrão utópico para os que não são membros dessa mesma elite e, possivelmente, se um dia vierem a figurar nesse grupo, repetirão a dose de ansiedade pelas cifras e desdém pelas artes.


O recente envolvimento a olhos vistos de alguns membros da elite brasileira – que é apenas financeira e não cultural, por isso não-burguesa – com a política em diferentes níveis desde o início da falência da Nova República em 2013, seu aprofundamento em 2016 e suas completamente novas conformações em 2018 nos podem servir de base analítica para uma mudança na atuação que era antes somente de bastidores, à meia-luz. Uma vez satisfeitos ao menos em teoria com a eleição do candidato Jair, pelo qual tanto lutaram em apoio (apesar dos fatos recentes mostrarem um desgaste dessa relação), a elite brasileira passou claramente a ocupar-se das pautas da economia neoliberal tanto prometidas. Os temas culturais são por ela ignorados. O próprio governo trata o assunto em segunda, terceira, quarta ordem, quando o faz e quando o faz, faz em nome de uma ideologia clara e nada produtiva ao caráter público, tentando "incorporar" nos cidadãos a particularidade da narrativa a qual pertence: conservadora, machista, heteronormativa, cristã, branca, pouco afeita às preocupações com as desigualdades e com a gestão democrática da diversidade.


A elite brasileira está muito longe de cultivar a si no sentido de consumo de cultura e de preocupação com o tema, como talvez esteja fazendo The Bookworm e como fez o barão de Crassier. A elite brasileira, apesar dos bolsos cheios e contas bancárias confortáveis, no mais das vezes não passa nem perto de ter o capital cultural que um dia foi tão importante para outras formas de elite manterem-se no poder, justificarem-se no poder. Talvez por isso, pela ausência daquilo que pode gerar vínculos sociais, sentimento de empatia e mesmo estímulo intelectual, a elite brasileira grita, ameaça, esbraveja, desrespeita, ataca com a falsa moral – quase sempre "em nome de Jesus" – e orquestra golpes ao menor sinal de oposição.


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* Luciano Chinda Doarte é professor, historiador e um dos coordenadores do Grupo de Estudos e Pesquisas em Patrimônio Cultural (GEPPC).


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REFERÊNCIAS


BARKER, Chris. The SAGE Dictionary of Cultural Studies. London: SAGE Publications, 2004.

BERNSTEIN, Eckhard. Culture and Customs of Germany. Westport/CT: Greenwood Press, 2004.

BONAMINO, Alicia; ALVES, Fátima; FRANCO, Creso; CAZELLI, Sibele. Os efeitos das diferentes formas de capital no desempenho escolar: um estudo à luz de Bourdieu e de Coleman. Revista Brasileira de Educação. V. 15. N 45. Set./dez. 2010. P. 487-594. Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/rbedu/v15n45/07.pdf>. Acesso em 27abr.2020.

BOURDIEU, Pierre. Os três estados do capital cultural. In: NOGUEIRA, Maria Alice; CATANI, Afrânio (Org.). Escritos de Educação. Petrópolis: Vozes, 1979. P. 73-79.

BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. A Reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992.

CAPITAINE, Ulysses. Correspondance de Bernard de Montfaucon bénédictin avec le Baron D. de Crassier archéologue liégeois. Liége: Tipographie de J.-G. Carmanne, 1855.

CHOAY, Françoise. A Alegoria do Patrimônio. São Paulo: Ed. UNESP, 2017.

CUNHA, Maria Amália de Almeida. O conceito “capital cultural” em Pierre Bourdieu e a herança etnográfica. Perspectiva. V. 25. N. 2. Jul./dez. 2007. P. 503-524. Disponível em <https://periodicos.ufsc.br/index.php/perspectiva/article/view/1820>. Acesso em 27abr.2020.

PEREIRA, Noádia Munhoz. O Conceito de Capital Cultural e a Certificação da Profissionalização em Pierre Bourdieu. Espaço do Currículo. V. 10. N. 1. Jan./abr. 2017. P. 123-131. Disponível em <https://www.researchgate.net/publication/316604044_O_CONCEITO_DE_CAPITAL_CULTURAL_E_A_CERTIFICACAO_DA_PROFISSIONALIZACAO_EM_PIERRE_BOURDIEU>. Acesso em 27abr.2020.

 
 
 

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