O Templo Sobre o Fio
- GEPPC
- 7 de jul. de 2022
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O Templo Sobre o Fio
A existência museal equilibrada nas tensões de cada dia
Por Luciano Chinda Doarte*
“A soberania, por isso, é pretensa, ensejada, ensaiada todos os dias, mas certamente não é garantida.”

Philippe Petit | Man on Wire, 1974, autor desconhecido
Fotografia digitalizada, Reprodução: Revista Época
Naquele ano de 1974, o francês Philippe Petit alcançou muito maior notoriedade pelos feitos de equilíbrio que já realizara em outras situações antes de fazê-lo em Nova York. Sem muitos volteios sobre a performance sabidamente arriscada, podemos ler nas palavras de João Oliveira Duarte um discurso elegante e atento sobre o feito:
Suspenso no ar, sem qualquer tipo de rede que lhe ampare a queda, sem cordas que não aquela onde, momentos antes, caminhava, Philippe Petit decide, naquela manhã de 1974, deitar-se. Olhos fechados ou abertos, não conseguimos perceber, mas muito pouco o separa do céu ou do inferno. Entre ele e o chão estão 417 metros de vazio, e apenas uma fina corda de aço e uma maromba – um pau longo, que serve para manter o equilíbrio – o separam de uma queda mortal. Perna suspensa sobre o abismo, como se se permitisse um momento de descanso, o corpo em tenso equilíbrio procura uma imobilidade impossível. Esta é, sem dúvida, uma das imagens que fizeram a fama de Philippe Petit, o francês que desafiou as autoridades norte-americanas – tinha feito o mesmo em Paris, em Notre-Dame, e continuou a fazê-lo em diversos outros sítios – ao passear-se numa corda esticada entre as duas torres do já desaparecido World Trade Center (DUARTE, 2019).
O que me interessa aqui é uma analogia que me soa não só possível, mas curiosamente bem encaixada. Assim como Philippe Petit, tenho tido rotineiramente a impressão de que o trabalho de um museu – enquanto um templo de cultura que serve a uma sociedade – está cotidianamente sobre o fio. E assim como o francês, penso que nos museus há, ao menos em pleno século XXI, a percepção disso enquanto um fato. Para esse pensamento, parto não só de um cabedal teórico, mas, sobretudo, da experiência in loco manejando a coisa museológica em diferentes contextos, seja fazendo parte do corpo técnico de instituições ou as administrando ou, ainda, como um visitante costumeiro desses lugares.
Inicialmente, a provocação que postulo é a da legitimidade. Um museu é instituído como um ator social – obviamente não humano, mas operado por pessoas – legitimado a atuar sobre determinados temas. Podemos nos debruçar, por exemplo, nas áreas propostas pela política de museus do Brasil, que aborda museus de história, de artes, de arqueologia, de cultura militar, entre outros. Uma vez instituído o museu está, por isso mesmo, autorizado e investido do poder para instituir sobre algo. Ou, como explicam muito bem André Gob e Noémie Drouguet:
A palavra “instituição” designa tanto “a ação pela qual se estabelece, se institui” como a coisa instituída. A instituição é o resultado de uma decisão voluntária, coletiva e pública, que se inscreve na duração, que apresenta um caráter de permanência. Assim, a existência do museu é decidida por um grupo de homens, uma sociedade; [...]. Isso o distingue definitivamente do organismo e o classifica na ordem das instâncias deliberadas e providas de normas baseadas num sistema de valores. Se a instituição é dotada de regras socialmente aceitas que regem seu funcionamento, ela é também muitas vezes encarregada de estabelecer ou de controlar as normas ou as modalidades de existência de um segmento da sociedade (2019: 319).
Retomando a provocação inicialmente posta, há legitimidade. Um museu de história está autorizado a atuar sobre a história, sobre o passado do contexto em que se insere. Tanto pela instituição da própria instituição enquanto coisa, quanto pela atuação, por exemplo, de um corpo técnico e, por isso, capacitado para tal. E não só o museu está legitimado, mas espera-se que ele o faça. Está em um museu de história boa parte dos recursos que as sociedades de cultura ocidental/ocidentalizada, moderna, republicana têm para elaborar sobre o passado – isso, claro, ignorando os entraves colocados pela caquistocracia que nos alcança comumente no contemporâneo.
O museu pode fazer e, ainda, deseja-se que o faça. Não à toa ele faz parte do que o francês Pierre Nora chamou de lugares de memória (1993). Por diferentes processos, nossa organização social legou à instituição a função de elaborar plasticamente uma memória social, quase que imitando a capacidade biológica humana, mas com a necessidade de re-inventar todos os dias os termos do comum. Percebida a “possibilidade esperada” dos museus, cabe a questão dos motivos. Por que fazer? Não só como fazer, mas com qual sentido, com quais objetivos – se existem? Então, postulo uma segunda provocação, usando das perguntas feitas por Mary Midgley elaboradas para pensar as práticas do pensamento reducionista (que, no mais das vezes, é também o que fazem os museus):
[...] naturalmente perguntamo-nos: o que significa entender o funcionamento do pensamento humano, ou da cultura humana? Que tipo de entendimento necessitamos aqui? É o tipo de entendimento que poderia ser alcançado atomizando o pensamento, analisando-o em suas partículas irredutíveis e depois reconectando-as? Ou, em vez disso, é o tipo de entendimento a que normalmente nos referimos quando falamos em compreender uma atitude, uma sugestão, uma diretriz ou uma palavra, colocando-a em um contexto que a torne inteligível – fornecendo um background adequado e penetrando no que ela significa para aqueles que o detêm? (2014: 127-128).
Adiantando hipóteses, fico com a opção da autora: há um tanto de cada possibilidade quando reduzimos a uma coleção, uma mostra, um recorte todo o processo histórico de um território e das gentes que com ele se relacionaram e se relacionam. Os termos do comum estão em negociação. E, aqui, dois pontos parecem centrais: o primeiro é o fato de que sobre o passado nada está eternamente decidido, a memória e a construção de um discurso sobre a história são campos de disputa constante; e, o segundo ponto, é o de que os museus em geral estão esperançosamente obrigados a manejarem cargas tão simbólicas e tão abstratas que é árdua a atribuição de sentidos, porque “é, afinal, por meio dos museus, seus acervos e exposições, e especialmente os museus históricos, que noções abstratas como ‘história’, ‘nação’, ‘cidadania’, ‘passado’, ‘futuro’ circulam de modo material e visível, assumindo, quando hegemônicas, a estabilidade e a solidez do bronze e do mármore” (GONÇALVES, 2006: s.p. [6]).

Sem título [Philippe sobre as torres da Catedral de Notre-Dame], 1971, autor desconhecido
Fotografia digitalizada, Reprodução: Jornal Inevitável
A cultura de modo amplo, o trabalho da cultura de maneira estrita, o passado e a história são símbolos que articulamos como referentes comuns e que aos museus cabe uma obrigação de participar dessa negociação e, ao mesmo tempo, está neles uma potência gigante de, quando atuam, serem aceitos porque “legitimados”, porque “lugares de memória”, porque, em outros termos, estão reconhecidos como instituições que legislam sobre o assunto. Mas saber que a operação é política, complexa e cotidiana nos imbui de uma criticidade que nos afasta da inocência e do maravilhamento com o belo postulado enquanto tal. Ou, como disse Susan Sontag quando elaborou sobre a arte, a interpretação ou a defesa da própria arte – ou, aqui, da cultura de modo amplo, como a prática dos museus – carece de atenção ao seu tempo:
Ninguém jamais conseguirá reencontrar aquela inocência anterior a toda teoria, quando a arte não precisava justificar a si mesma, quando não se perguntava o que uma obra de arte dizia porque se sabia (ou se pensava saber) o que ela fazia. A partir de agora e enquanto existir a consciência, estamos presos à tarefa de defender a arte. Podemos apenas objetar contra tal ou tal meio de defesa. Na verdade, temos a obrigação de derrubar qualquer meio de defesa e justificação da arte que se torne especialmente obtuso, opressivo ou insensível às necessidades e práticas contemporâneas (SONTAG, 2020: 17).
Com isso em mente, e retomando o começo desse texto, lembro que os valores que instituem poderes de legislar sobre a cultura aos museus são baseados em um sistema social. Os sistemas de organização e práticas sociais são sempre relacionais, contextuais, de íntima relação entre público-instituição, por exemplo, mesmo que mais comumente os museus não sejam atores sociais com holofotes sobre eles. Mas, exatamente pelo vínculo com a sua sociedade, cada vez mais notado como um liame importante, o museu, esse templo de cultura do mundo moderno, está, tal como Philippe Petit, sobre o fio.
E a ideia de estar se equilibrando em um quase vazio – afora a corda de aço, como no caso de Petit –, está aqui vinculada àquela proposta por Georges Didi-Huberman quando pensa a arte. Na ideia proposta pelo autor, “uma obra só seria soberana na medida em que se mostrasse vã, ou seja – longe de toda ‘vaidade’ mundana, é claro – inútil em relação às estratégias de poder e inestimável em relação às economias mercantes” (2019: 27). Mas, que soberania tamanha seria essa? O mesmo autor questiona a possibilidade dizendo:
Não é evidente que a potência da arte se confronta constantemente com o poder das instituições – religiosas, políticas, jurídicas, culturais e mesmo militares – que a cercam e lhe permitem (mas até que ponto?) existir, trabalhar? (DIDI-HUBERMAN, 2019: 26).
E, seguindo nessa esteira, sim, é claramente evidente – com o perdão do pleonasmo. A obra, no caso de Didi-Huberman, e o museu (também enquanto obra operada por pessoas) estão, sim, constantemente equilibrando-se – ou sendo equilibradas, porque inanimados – sobre o fio. E isso se dá em variadas ações. Em um museu, fica-se entre a promessa de que o patrimônio nele guardado e exposto será preservado ad aeternum e transmitido às próximas gerações (DAVALLON, 2012), como mandam as práticas patrimoniais, e a incontornável condição da constituição física das coisas e do princípio da entropia, pelo qual tudo se deteriorará e será consumido em algum momento, apesar de qualquer esforço (BRADLEY, 2001).
Outro fio para o constante equilíbrio é exatamente o que balança entre alguma soberania de fato instituída ao museu para que trabalhe sobre algo, como sobre o passado e a história, e as ressonâncias e os pertencimentos da sociedade que o cerca. Como exemplo pode-se considerar um corpo técnico amplamente progressista do ponto de vista social e político, afeito aos direitos dos grupos LGBTQIA+, que podem propor pesquisas e exposições que valorizem as práticas culturais das pessoas envolvidas nessas dinâmicas, mas que está no seio de uma sociedade majoritariamente afeita aos valores cristãos e à moral conservadora.
Há aí duas marcas latentes: a primeira é o fato de que o museu deve estar em contato com o público que o cerca e o dá sentido; o segundo é, o também fato, que no caso massivo dos museus, que são públicos, é o dinheiro do imposto pago compulsoriamente pelo contribuinte que financia as atividades da instituição. Obviamente, perceber isso não é uma defesa neoliberal pela autossustentação financeira dos museus nem uma complacência com um conservadorismo moral que retroalimenta sistemas sociais racistas, patriarcais, classistas etc. Mas é, ainda, notar algo da seara da política pública simples: um sistema perene de expectativa, financiamento, ação, avaliação (e reação, quando há). É perceber a agenda pública.
A soberania, por isso, é pretensa, ensejada, ensaiada todos os dias, mas certamente não é garantida. Uma soberania “de fato soberana”, seguindo as ideias de Didi-Huberman, corre o risco de, de fato, cair no abismo por não estar equilibrando-se sobre o fio. Ignorar as tensões relacionais não é viável como talvez o tenha sido na aurora do século XIX. "Talvez" porque nada garante também que o tempo da frutífera criação de museus as coisas tenham sido "mais fáceis" ou "mais simples" nesse sentido.
E no contemporâneo, se há algo gritante são as tensões postas sobre aquele que se equilibra sobre o fio – que aqui é o museu. A percepção das violências históricas, da retroalimentação de um sistema civilizadamente selvagem que se alimenta de vidas, da desigualdade é um ataque aos corpos todos os dias. Por causa desse próprio modo do contemporâneo, para alguns o ataque é uma brisa no rosto ao abrir uma ampla janela de um apartamento de frente para um parque enorme; para outros, são oitenta tiros das Forças Armadas sem qualquer motivação racional. A desigualdade, nesse caso, é em si uma pedra no caminho que se contornada, rola sobre quem passa por ela, como uma Esfinge e suas charadas. Ou ainda, como disse Giorgio Agamben, a casa queima:
Que casa está queimando? O país onde vive, a Europa, o mundo inteiro? Talvez as casas e as cidades já estejam queimadas, não sabemos desde quando, numa única e imensa fogueira que fingimos não ver. De algumas, restam apenas pedaços de muro, uma parede pintada, uma parte do teto, nomes, muitíssimos nomes já devorados pelo fogo. E, todavia, os recobrimos tão zelosamente com gesso branco e palavras mentirosas que parecem intactos. Vivemos em casas, em cidades queimadas de cima a baixo como se ainda estivessem em pé, as pessoas fingem viver aí e saem pelas ruas mascaradas entre as ruínas, como se ainda fossem os bairros familiares de outrora (AGAMBEN, 2021: 12-13).
Novamente, retomando Susan Sontag, não é possível inocência ao ser alguém que equilibra uma casa centenária, sede de um museu histórico enraizadamente elitista enquanto casas queimam. Algumas sabidamente queimam há séculos, como as senzalas, depois os quilombos e hoje as periferias das metrópoles, com seus habitantes muitas vezes gritando com raiva e pedidos de socorro, e mesmo assim os museus recebem turmas de crianças de sete, oito, dez, quinze anos e ensinam o que, como e por que cada fragmento ali privilegiado deve ser entendido como importante “para todos”. Retomando Mary Midgley, para que esse reducionismo? Qual a função de querer, assim, concretizar racionalmente a abstração por excelência: a cultura?
Ainda em Agamben está mais uma provocação para nós, os vivos, atores sociais que, além de existirem, ganham crachás físicos e morais que lhe sustentam no meio social: “Perceber que a casa queima não coloca você acima dos outros: pelo contrário, é com eles que deverá trocar um último olhar quando as chamas estiverem mais próximas” (2021: 23). Por isso mesmo, cada passo deve ser dado com racionalidade, consciência, como Philippe Petit sobre uma corda de aço, e ainda, sempre que possível, com democracia, humanidade e solidariedade porque um “outro” é um tipo de “eu” fora de mim e deles dependemos de diferentes maneiras e por causa deles, muitas vezes, trabalhamos e nos esforçamos. Sobre o fio está não só o jogo cotidiano, mas as próprias condições para cada dia. Além dele, ou estão uma origem e um encerramento nas extremidades ou um vazio no qual, quando em queda, não há o que nos segure, mais ou menos como Petit entre as torres nova-iorquinas sem rede de proteção.
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* Luciano Chinda Doarte é historiador, professor e um dos coordenadores do Grupo de Estudos e Pesquisa em Patrimônio Cultural (GEPPC). Atualmente é Coordenador do Museu Municipal Atílio Rocco, em São José dos Pinhais/PR.
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REFERÊNCIAS
DAVALLON, Jean. Comment se fabrique le patrimoine: deux regimes de patrimonialisation. In: KHAZNADAR, Cherif (Org.). Le patrimoine, oui, mais quel patrimoine? Paris: Maison des Cultures du monde, 2012. P. 41-57.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobre o Fio. Trad.: Fernando Scheibe. Desterro [Florianópolis]: Cultura e Barbárie, 2019.
DUARTE, João Oliveira. Philippe Petit: o atleta da alma. Jornal Inevitável, Oeiras/Portugal, 19 jun. 2019. Disponível em <https://ionline.sapo.pt/artigo/662464/philippe-petit-o-atleta-da-alma-?seccao=Mais_i>. Acesso em 6 jul. 2022.
GOB, André; DROUGUET, Noémie. A Museologia: história, evolução, questões atuais. Trad.: Dora Rocha e Carlos Alberto Monjardim. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2019.
GONÇALVES, José Reginaldo Santos. Prefácio. In: SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. A Escrita do Passado em Museus Históricos. Rio de Janeiro: Garamond, MinC, IPHAN, DEMU, 2006. S.p. [5-7].
BRADLEY, Susan M. Os Objetos Têm Vida Finita? In: MENDES, Marylka; SILVEIRA, Luciana da; BEVILAQUA, Fatima; BAPTISTA, Antônio Carlos Nunes (Orgs.). Conservação: conceitos e práticas. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2001. P. 15-34.
MIDGLEY, Mary. A Presença dos Mitos em Nossas Vidas. Trad.: Alzira Allegro. São Paulo: Editora Unesp, 2014.
NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. Trad.: Yara Aun Khoury. História & Cultura, São Paulo/SP, v. 10, jul.-dez. 1993, p. 7-28.
SONTAG, Susan. Contra a Interpretação e outros ensaios. Trad.: Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
SOPRANA, Paula. Philippe Petit: “Dei às pessoas a imagem de que nada é impossível”. Revista Época, 11 nov. 2015. Disponível em <https://epoca.oglobo.globo.com/vida/noticia/2015/11/philippe-petit-dei-pessoas-imagem-de-que-nada-e-impossivel.html>. Acesso em 6 jul. 2022.
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