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Fonte de mel nos olhos de gueixa

  • Foto do escritor: GEPPC
    GEPPC
  • 28 de abr. de 2020
  • 6 min de leitura

Fonte de mel nos olhos de gueixa

O belo e o conforto nos museus

Por Luciano Chinda Doarte*

“[...] a própria contemplação daquilo que está encarcerado e divulgado nos museus traria ao indivíduo somente benefícios, promovendo conforto, distração, melhora de si, mais conhecimento e quaisquer outras benesses.”

La Japonaise (Camille Monet in Japanese Costume), 1876, Claude Monet

231, 8 cm X 142,3 cm, óleo sobre tela, Museum of Fine Arts Boston


Seja em Você é Linda, música de Caetano Veloso, de 1983, ou em La Japonaise, pintura de Claude Monet, de 1876, a existência de uma musa inspiradora, de um objeto de adoração, que é razão e alvo da produção cultural está escancarada e ao mesmo tempo implícita. O mistério no qual é envolta a figura feminina, a beleza que torna estupefato o que galanteia e o pedestal sobre o qual a figura é colocada anunciam não só uma inspiração por uma musa (modelo de produção cultural bastante em voga nos debates feministas de arte e cultura em geral), mas também a construção e manutenção de valores, especialmente do caráter estético de admiração. Veloso assim explicita todo o jogo de admiração, de homenagem e de serenata na letra de Você é Linda:

Linda / E sabe viver / Você me faz feliz / Esta canção é só pra dizer / E diz / Você é linda / Mais que demais / Você é linda sim / Onda do mar do amor / Que bateu em mim

Já Monet, em sua pintura La Japonaise, dedicou-se ao tema do Japonismo, comum na França na segunda metade do século XIX, e também usou da imagem de sua companheira para pintar a intenção, como diz Betty Sahm Diesendruck:

A mulher envolta em um quimono esplêndido, ricamente bordado e cercada por leques é a esposa de Monet, Camille. [...] Camille-Leonix Doncieux (1847-1879) ainda estava na adolescência, quando Monet a conheceu por volta de 1865. Ela era de origem humilde e trabalhou como modelo - uma garota atraente, inteligente, com cabelos escuros e olhos maravilhosos. Claude Monet era um pintor pobre naquela época. Camille se tornou sua amiga, amante e modelo.

Cada qual com sua musa e seu motivo, uma imagem do belo foi produzida, endossada pela semântica daquilo que é cultural na sociedade ocidental, o que de alguma forma a protege e a dota de simbolismos e cargas subjetivas que, no mais das vezes, validam sua existência por ela mesma.


Detalhe de La Japonaise (Camille Monet in Japanese Costume), 1876, Claude Monet

231, 8 cm X 142,3 cm, óleo sobre tela, Museum of Fine Arts Boston



Independentemente de motivos quaisquer, não é sobre a inspiração das musas e da produção cultural em geral que me debruço agora, mas, sim, com o fato de que, especialmente com as artes visuais em museus, mas também com outras produções e suas outras formas de preservação e circulação sociocultural, a proteção desses objetos sob técnicas próprias e sua exposição nos verdadeiros templos da cultura: os museus, desde o século XVIII carregam em suas características mais rapidamente lembradas o potencial da estética e da admiração de elevarem o indivíduo contemplador para outros patamares de si e de sociedade ao mesmo tempo em que o suspendem momentaneamente da realidade na qual se insere.


Explico: uma das defesas dos museus na sociedade na corrente tradicional de pensamento e de contemplação estética é a de que eles teriam, então, o potencial de suspender a realidade por algum momento (pelo menos no momento da visita), desligando o indivíduo do entorno e permitindo a ele uma experiência contemplativa ao belo. Por sua vez, a própria contemplação daquilo que está encarcerado e divulgado nos museus traria ao indivíduo somente benefícios, promovendo conforto, distração, melhora de si, mais conhecimento e quaisquer outras benesses.


Há já muitos estudos, especialmente nos Estados Unidos da América, sobre os benefícios de se consumir arte e cultura em geral. Resumidamente, os estudos apontam que dentro de eixos no estilo cartesiano de tempo e número de indivíduos – sendo o eixo do tempo formado por durante o consumo, um tempo após o consumo e cumulativo, e o eixo do número de indivíduos formado pelo que é de caráter individual, interpessoal e comunitário – há benefícios, chamados de impactos intrínsecos, na produção cultural ou para com o produto cultural como: a capacidade de envolvimento/aprofundamento; o prazer/deleite; a capacidade de formação de empatia; desenvolvimento cognitivo; produção de vínculos sociais; e a produção de significados/sentidos comuns (MCCARTHY; ONDAATJE; ZAKARAS; BROOKS, 2004). Outro estudo estabelece como benefícios, além da capacidade de envolvimento do consumidor; o estímulo intelectual; a ressonância emocional; os valores espirituais; o desenvolvimento estético; e a anteriormente citada produção de vínculos sociais (BROWN; NOVAK, 2007).


Para além desses benefícios, há a largamente propagada possibilidade, ao se visitar museus de arte, por exemplo, de se entrar em contato, de se ver com os próprios olhos pinturas famosas das quais há muito se ouve falar. Nesse sentido, ir ao Musée du Louvre e ver Monalisa, visitar o Museum of Fine Arts Boston e ver La Japonaise, ou visitar o Museu Nacional do Brasil e poder ver o fóssil Luzia é completamente diferente de ver todos esses artefatos pelos livros ou pela internet porque o que vemos de casa é uma reprodução e uma reprodução não é a obra autêntica. Sobre a autenticidade, diz Walter Benjamin:

Mesmo na reprodução mais perfeita, um elemento está ausente: o aqui e o agora da obra de arte, sua existência única, no lugar em que ela se encontra. É nessa existência única, e somente nela, que se desdobra a história da obra. Essa história compreende não apenas as transformações que ela sofreu, com a passagem do tempo, em sua estrutura física, como as relações de propriedade em que ela ingressou. [...] O aqui e o agora do original constitui o conteúdo da sua autenticidade, e nela se enraíza uma tradição que identifica esse objeto, até os nossos dias, como sendo aquele objeto, sempre igual e idêntico a si mesmo (BENJAMIN, 1987: 167).

Portanto, é pelo contato com a obra em si, a obra original, o produto do artista, que se tem contato com a obra essencialmente. Isso nunca será suprido por reproduções de quaisquer tipos. Uma visita a um museu que preserva as obras originais dos artistas poderia, de imediato, oferecer a consolidação dessa vontade que de forma consciente ou não foi inculcada no imaginário ocidental sobre as obras de arte, a preservação e os museus.


Por fim, o que me importa salientar é que os museus estão historicamente colocados em um espaço social simbólico de potenciais refúgios do cotidiano, de possíveis afagos subjetivos dados os benefícios que eles parecem proporcionar a quem os visita, de locais de cultivo de si em um lugar confortável, educativo, socialmente bem visto e de contato com o que é belo, com o que é bom e com a manutenção de valores socioculturais pujantes nas nossas sociedades, por mais que muitas das vezes ignorados tanto pelos governantes quanto pelos cidadãos por “n” motivos. Independente das negligências, os museus alcançaram um status de algo bom in natura, têm sua justificação existencial em sua própria existência e só podem trazer benesses ao corpo social em quaisquer escalas. Ou, noutras palavras, como escreveu e cantou Caetano Veloso:

Gosto de ver / Você no seu ritmo / Dona do carnaval / Gosto de ter / Sentir seu estilo / Ir no seu íntimo / Nunca me faça mal!

Ainda, é possível também percebermos um endosso não diretamente aos museus, mas às artes em seu potencial de produzir positivamente para, pelo e com o indivíduo no entendimento de Benjamin sobre como se dá o contato do sujeito com as obras e como, nessa leitura, esse contato pode proporcionar um momento que além de único, suspende momentaneamente o admirador da realidade na qual se encontra. Sou eu quem articula aqui o espaço museológico por ser ele, na maioria das vezes, o lugar que permite o contato das pessoas com as obras de arte. O autor alemão vê o contato com as obras de arte como um momento de recolhimento, de devoção e, então, do indivíduo ser atravessado pela obra e, ao fim do processo, sair uma pessoa diferente da anterior ao contato. O valor de recolhimento está completamente contrário colocado pelo autor ao de distração, e para ele:

[...] o conhecedor a aborda [a obra de arte] com recolhimento. [...] quem se recolhe diante de uma obra de arte mergulha dentro dela e nela se dissolve, como ocorreu com um pintor chinês, segundo a lenda, ao terminar seu quadro (BENJAMIN, 1987: 192-193).

A leitura aqui apresentada é bastante ideológica, política e tem raízes profundas no modelos sociocultural proposto a partir da Revolução Francesa. Certamente hoje os museus podem e devem ser lidos e questionados de formas novas, atualizadas aos nossos tempos e aos processos sociais do século XXI. Isso é assunto para um próximo texto.


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* Luciano Chinda Doarte é historiador, professor e um dos coordenadores do Grupo de Estudos e Pesquisa em Patrimônio Cultural (GEPPC).


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REFERÊNCIAS


BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. Obras Escolhidas vol. 1. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.

BROWN, Alan S.; NOVAK, Jennifer L. Assessing the Intrinsic Impacts of a Live Performance. Lincoln/NE: Major University Presenters, 2007. Disponível em < http://wolfbrown.com/component/content/article/42-books-and-reports/400-assessing-the-intrinsic-impacts-of-a-live-performance>. Acesso em 26abr.2020.

BROWN, Alan S.; NOVAK, Jennifer L. Measuring the intrinsic impacts of arts attendance. In: Cultural Trends, Vol. 22. N. 3-4, 2013. P. 223-233. Disponível em <http://dx.doi.org/10.1080/09548963.2013.817654> . Acesso em 26abr.2020.

MCCARTHY, Kevin F.; ONDAATJE, Elizabeth H.; ZAKARAS, Laura; BROOKS, Arthur. Gifts of the Muses: reframing the debate about the benefits of the arts. Santa Monica/CA: RAND Corporation, 2004. Disponível em < https://www.rand.org/pubs/monographs/MG218.html>. Acesso em 26abr.2020.

RADBOURNE, Jennifer; GLOW, Hilary; JOHANSON, Katya. Measuring the intrinsic benefits of arts attendance. In: Cultural Trends, Vol. 19. N. 4, 2010. P. 307-324. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1080/09548963.2010.515005>. Acesso em 26abr.2020.



 
 
 

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