Há muito reconhecemos falhas
- GEPPC
- 18 de mai. de 2020
- 8 min de leitura
Há muito reconhecemos falhas
O Dia Internacional dos Museus de 2020 e sua necessidade
Por Luciano Chinda Doarte*
“[...] há a potência de ser alguém, mas esse alguém ainda é ninguém, é um rosto precisando de forma, é uma possibilidade esperando ser apropriada e executada […].”

Electric Laser Goo Pop Head, 2010, Douglas Coupland
121,8 cm X 143, 5 cm, técnica mista, Vancouver Art Gallery
Com cabelos lisos compridos, ombros magros e roupa sem estampa a pessoa na fotografia apropriada por Douglas Coupland para produzir Electric Laser Goo Pop Head teve sua identidade suspensa. Os respingos de tintas de diferentes cores cobrem o rosto que permitiria identificar alguém, um nome, uma marca de nascimento, qualquer especificidade. Na fotografia temos um retrato, muito comum em álbuns de anuários de Ensino Médio em escolas norte-americanas que, por isso, pode remeter à adolescência, momento de efervescência mental e social, cognitiva e sexual, biológica e cultural para a formação da identidade, dos valores, das bases mais estáveis de si. Entretanto, toda a erupção de formação recobre o rosto, a identificação mais rápida, e aparece como cores sobre a imagem em preto e branco, possibilitando a lembrança das diferentes vertentes que podem sair da interioridade de todos nós e se tornar público no meio social.
Apesar dessa chave de leitura, cuja não desconsidero totalmente, valho-me ainda de outra lente de interpretação: o anonimato, portanto, que é ninguém e pode ser todos mundo, individualmente ou coletivamente. Com as cores sobre o rosto, Coupland apaga a individualidade e proporciona um espaço do corpo, que pode ser o corpo de qualquer um de nós. À exemplo dessa possibilidade de ninguém e todo mundo, lembro que o artista produziu outras imagens como Electric Laser Goo Pop Head. Brilliant Information Overload Pop Head e Liquid Video Game Pop Head, todos de 2010, são outros exemplares da mesma safra. Com isso, reitero, o anonimato permite que seja alguém não identificado, portanto todos nós, qualquer um de nós.
Aproveitando essas duas leituras, saliento o tema do Dia Internacional dos Museus de 2020: Museus Para a Igualdade: diversidade e inclusão, proposto pela Conferência Internacional dos Museus. A breve análise que faço aqui sobre o tema deste ano não se dá à luz das atividades produzidas pelas instituições museológicas mundo afora – o que é uma possibilidade para outro momento –, mas sim com vistas a necessidade de um tema como esse em nosso contemporâneo.
Com simples interpretação de texto, o título aponta três tópicos importantes: os museus como espaço de promoção da igualdade, consequentemente como instrumentos contra as desigualdades; o foco na diversidade, então, não perdendo de vista a inerente diferença entre os indivíduos mesmo que inseridos em coletividades; e a necessidade de inclusão, porque, especialmente, há alguma exclusão. É de se imaginar que ao promover igualdade considerando a diversidade, os museus não devem promover hegemonias, mas, ao contrário, salientar a existência de diferenças garantindo as mesmas potências sociais a cada indivíduo, portador de sua própria e irrepetível singularidade, por isso de caráter inclusivo: colocar a todos, independente da diferença que o caracteriza, sob os mesmos paradigmas, sobre as mesmas garantias, à luz da mesma intenção, ou, como apontou Richard Rorty ao falar da relação entre objetividade e solidariedade:
[...] o desejo por objetividade não é o desejo de escapar das limitações de uma determinada comunidade, mas simplesmente de alcançar maior concordância intersubjetiva possível, o desejo de estender a referência do pronome “nós” tão longe quanto possível (RORTY, 1997: 39).
Se cabe ao museu se ocupar das diferenças privilegiando-as com o mesmo tom em seus trabalhos, não só dentro dos museus, mas também no todo social, cabe salvaguardar a pretensão democrática e pluralista baseada na igualdade e no respeito. Isso podemos encontrar na explicação do próprio ICOM sobre a eleição do tema, para o qual o museu:
[...] tem como objetivo se tornar um ponto de encontro para celebrar a diversidade de perspectivas que compõem as comunidades [...], além de promover ferramentas para identificar e superar preconceitos no que exibem e as histórias que eles contam (ICOM, 2020).
Ocorre que essa preocupação sublinhada em 2020 não é nova, o que nos mostra décadas de intenções e, ao que tudo indica, reiteradas falhas em sua execução. Em 1971, por exemplo, a IX Conferência do próprio ICOM já discutia “O Museu a Serviço do Homem, Hoje e Amanhã: o papel educacional e cultural do museu”, de acordo com seu arquivo. Em 1972 temos o que se considera hoje um marco na história da Museologia: a Mesa Redonda de Santiago do Chile, que tratou de repensar o papel e o posicionamento social do museu, mais especificamente em uma visão que não desconsiderava a preservação das coleções e a contemplação de ícones eleitos na produção cultural humana, mas que aliava a isso tudo a consciência política cotidiana da atividade museológica. Juvencio del Valle, por exemplo, assim salientou a necessidade de revisão da prática e da teoria museal no evento:
Nossos esforços atuais devem ser no sentido de derrubar todas as paredes e obstáculos para obtermos uma visão melhor e mais livre. Somos assolados por esses grossos e opacos muros isolantes, que limitam o horizonte e a visão livre da vida manifestada em exercício e em ação. Precisamos de muita clareza, da luz vivificante do dia e da vida criadora. Que a casa em que se depositam os testemunhos do passado seja como um mirante aberto, permanentemente disposto a satisfazer, sem obstáculos, a curiosidade natural do olho humano. Somente assim o museu poderá impressionar o mundo como um organismo vigente, como um corpo que respira, pulsa e luta lado a lado com seu criador, o homem (DEL VALLE apud. NASCIMENTO JUNIOR, 2012: 114).
Como um dos resultados do evento e do assunto debatido, Hughes de Varine salientou três tópicos dentre os quais está que “o museu é uma instituição a serviço do meio: este deve entrar no museu e seu o público é, antes de tudo, a população da comunidade” (VARINE apud. NASCIMENTO JUNIOR, 2012: 144), portanto, o papel tecnocrata do museu e de sua gestão e de sua atividade deveria ceder seu lugar de privilégio e concedê-lo tanto quanto possível à comunidade de pertencimento e, sem dúvidas, aos seus problemas, aos seus temas próprios, atentar-se para a realidade do entorno geográfico, humano e cultural dos museus.
Um dos resultados da Mesa Redonda de 1972 foi a Declaração de Quebec, de 1984, que consolidou as bases das novas ideias e das mudanças pretendidas pela Museologia internacional em favor da reflexão e da ação dos museus considerando seu posicionamento no desenvolvimento social. Pensar a interdisciplinaridade, a atividade extra-muros, a preocupação com o todo democrático; e mudar o foco das atividades do museu do acervo para as pessoas e os grupos sociais são exemplos de produções e preocupações a partir deste documento.
No Brasil esse movimento encontrou solo fértil dada a Redemocratização que transitava da Ditadura Civil-Militar para a Nova República no país, o que, com as promessas democráticas, deveria valorizar a democracia, o direito ao contraditório e ao diferente e a liberdade com base na igualdade de todos sob os mesmos pressupostos. Ainda, os temas de multiplicação de identidades e de “categorias sociais disponíveis” (SCOTT, 1999: 18) também frutificou, e segue frutificando e tentando se enraizar, no Brasil por meio das lutas feministas, negras, LGBTQI+ e outras que, como prometia a Constituição Cidadã, queriam seu espaço na seara pública brasileira para serem ouvidos e para participarem das decisões.
Como bem sabemos, pois basta-nos ser brasileiro para tal, nenhuma das promessas – nem o museu integral, preocupado e inclusivo com o todo democrático; nem as propostas constitucionais – foram consolidadas desde as décadas de 1970 e 1980. Também no meio social, não só na atividade das instituições, falta muito para que alcancemos a harmonia que considera a diferença, a respeita e produz com ela sobre o todo. Os números de feminicídios, de crimes causados com base em raça e cor e os percentuais de desigualdade econômica são índices da realidade que está longe da teoria.
Sobre os museus e o papel da cultura e dessas instituições no meio social, por exemplo, para a consolidação das propostas da segunda metade do século XX, seria necessário, acredito, abandonarmos divisões culturais entre cultura erudita e cultura popular que na maioria das vezes são mais produzidas e mantidas pela segregação social que pelos resultados científicos encontrados no consumo de uma ou outra, como ainda defendem algumas pessoas atualmente. Separar as produções culturais como mais ou menos dignas de caráter de cultura pode ajudar a manutenção de racismos, elitismos e outros preconceitos sutis, mas com profundas marcas históricas no Brasil e no mundo.
Apesar de muitas vezes as Ciências Humanas e Sociais acreditarem no fim dessas nocivas segregações, “mesmo ao nível do senso comum”, como fez Maria Lourdes Lima dos Santos (SANTOS, 1988: 689), há discursos como o do apresentador do Luiz Camargo vlog, canal do YouTube com quase 370 mil inscritos, que no vídeo intitulado ALTA CULTURA x BAIXA CULTURA, reproduz o ideal de que, por exemplo, a música clássica e a leitura de bons livros melhoram o indivíduo que cultiva-se, que consome a alta cultura, e que consumir música popular, “como Anitta”, instiga instintos próximos da animalidade como a sexualidade.
Tendo o quadro atual e o histórico apresentado, paradoxalmente é espantoso e também não o é que em 2020 o tema da inclusão tenha de ser sublinhado não como reafirmação do compromisso, mas como necessidade a ser considerada quase que ainda em sentido seminal, dado que a preocupação com disparidades “relacionadas a muitos tópicos, incluindo etnia, gênero, orientação e identidade sexual, formação socioeconômica, nível de educação, capacidade física, afiliação política e crenças religiosas” (ICOM, 2020), reafirmo, não se deu ainda como a empiria mostra ser necessário e, acredito, as tentativas ou são paliativas ou têm sido insuficientes.
Entretanto, sabendo das potencialidades dos museus, é essencial que defendamos diariamente, em todas as produções dentro e fora dos espaços museológicos, a defesa da democracia, do direito à diferença e ao desenvolvimento autônomo dos indivíduos, nunca perdendo de vista os laços sociais e a base igualitária. Ter a consciência teórica dessas necessidades não resulta automaticamente em solução dos problemas, portanto, como salienta o ICOM:
[...] resta muito a fazer para superar a dinâmica de poder consciente e subconsciente que pode criar disparidades dentro dos museus e entre museus e seus visitantes (ICOM, 2020).
Essa é uma busca de longo prazo, que pretende uma perenidade e uma sociedade mais justa, que garanta espaços iguais a diferentes pessoas. A luta por essa garantia se estende muito além de dias comemorativos, como diz Suay Aksoy, Presidente do ICOM:
Essas ambições não se limitam ao dia 18 de maio, nós as perseguiremos pelo tempo que forem necessárias, ao lado de profissionais pioneiros dos museus que já estão na linha de frente da busca pela igualdade (AKSOY, 2020).
É à luz dessa consciência antiga, mas que ainda nos assola, que o espaço do corpo, da identidade e da cultura está, ou deve estar, nos museus da mesma forma que está em Electric Laser Goo Pop Head de Coupland: há a potência de ser alguém, mas esse alguém ainda é ninguém, é um rosto precisando de forma, é uma possibilidade esperando ser apropriada e executada, é um instrumento político importante nas negociações cotidianas, só nos falta ocupar. Ou melhor, no caso dos museus, nos falta pluralizar, diversificar, incluir, dotar a todos com as mesmas chances no mesmo palco de disputa narrativa garantindo o que as décadas de 1970 e 1980 já nos anunciaram: um museu como agente crítico, analítico e consciente na sociedade, sobre a sociedade e para a sociedade.
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* Luciano Chinda Doarte é professor, historiador e um dos coordenadores do Grupo de Estudos e Pesquisas em Patrimônio Cultural (GEPPC).
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REFERÊNCIAS
AKSOY, Suay. Happy International Museum Day! ICOM, Paris, 18mai.2020. Disponível em <http://imd.icom.museum/international-museum-day-2020-presidents-message/>. Acesso em 18mai.2020.
NASCIMENTO JUNIOR, José do; TRAMPE, Alan; SANTOS, Paula Assunção dos. Mesa Redonda sobre la Importancia y el Desarrollo de los Museos en el Mundo Contemporáneo. Brasília: IBRAM, 2012.
RORTY, Richard. Objetivismo, Relativismo e Verdade. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997.
SANTOS, Maria Lourdes Lima dos. Questionamento à Volta de Três Noções (a grande cultura, a cultura popular, a cultura de massas). Análise Social, vol. XXIV (101-102), 1988 (2º-3º). P. 689-702.
SCOTT, Joan W. Experiência. In: SILVA, Alcione Leite da; LAGO, Mara Coelho de Souza; RAMOS, Tânia Regina Oliveira. Falas de Gênero. Florianópolis: Editora Mulheres, 199. P. 21-55. Disponível em <https://historiacultural.mpbnet.com.br/feminismo/Joan_Scoot-Experiencia.pdf>. Acesso em 12mai.2020.
THE THEME 2020 – Museums for Equality: Diversity and Inclusion. ICOM, Paris, s.d. Disponível em <http://imd.icom.museum/international-museum-day-2019/museums-as-cultural-hubs-the-future-of-tradition/>. Acesso em 18mai.2020.
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