top of page

Na boca e na mira

  • Foto do escritor: GEPPC
    GEPPC
  • 25 de mai. de 2020
  • 19 min de leitura

Na boca e na mira

O IPHAN na reunião ministerial de 22 de abril de 2020


Por Felipe Augusto Tkac e Luciano Chinda Doarte*

“Por certo, o IPHAN não foi citado como assunto propriamente em pauta, dado que sua importância e função são nitidamente desconhecidas do governo federal vigente, mas esteve na boca de alguns, meio que pela tangente, usado como exemplo.”

The Torment of Saint Anthony, 1487-1488, Michelangelo Buonarroti

47 cm X 34,9 cm, têmpera e óleo sobre tela, Kimbell Art Museum


O Brasil enquanto Estado nacional está longe, muito longe, de ser um santo, um sagrado, um qualquer coisa de inato bondoso que justifique adoração – bom, talvez isso seja situação sine qua non de qualquer Estado. Isso não porque seria pesaroso por ser o que é, mas porque o que é fora forjado por processos, narrativas, agentes e um sem número de partícipes, cada um com sua ideologia, intenção e propostas, que não necessariamente prezam/prezaram as ideias de bem comum, interesse público e desenvolvimento coletivo de maneira ética. Entretanto, se o Estado brasileiro como corpo político não pode ser louvado como santo, bem como seus agentes empíricos também não, uma coisa pode: a democracia, e qualquer chance, modo ou instrumento que a potencialize. Por isso, qualquer ataque à democracia deve ser rechaçado, porque, especialmente no Brasil, mas também no mundo todo, o que consegue melhorar a ação e a existência dos Estados nacionais, com todos os seus defeitos e históricos violentos, segregacionistas, produtores de fragilidades, é o regime mais democrático quanto possível.


Neste caso, o Santo Antônio do Deserto (ou Santo Antão, que é diferente do Santo António de Lisboa), atormentado quando tentava seguir seus propósitos, é a democracia brasileira, não o Estado brasileiro. Michelangelo, como muitos antes e depois dele, retratou metaforicamente a vida do homem que teria se libertado de todos os bens materiais e ido viver no deserto, como um eremita, tempo pelo qual teria sido alcançado por diversas tentações, em diferentes formas, como demônios e outros animais míticos que o assombravam querendo lhe causar medo.


Na sexta-feira, 22 de maio de 2020, foi tornada pública, pelo ministro Celso de Mello do Supremo Tribunal Federal, a gravação de uma reunião do presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, com seus ministros, então, gestores do primeiro escalão do governo. O vídeo tornou-se público por meio de um processo que considera as palavras do ex-ministro da Justiça e da Segurança Pública Sérgio Moro, que em depoimento para a Polícia Federal no dia 2 de maio de 2020, reforçando as acusações feitas quando da coletiva de imprensa na qual anunciou sua saída do governo federal, apontou tentativas do presidente Jair Bolsonaro em intervir na gestão da Polícia Federal. O depoimento completo do ex-ministro foi publicado pelo G1.


Com a intenção de avaliar se houve ou não declaração do Presidente da República sobre sua tentativa de interferência na Polícia Federal, em especial na Superintendência do Rio de Janeiro – como acusou Moro –, para privilegiar seus amigos e familiares a gravação da reunião do dia 22 de abril foi solicitada pelo STF e tornada pública em 22 de maio. Dentre todos os assuntos citados na reunião ministerial, um nos chama atenção: o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.


Por certo, o IPHAN não foi citado como assunto propriamente em pauta, dado que sua importância e função são nitidamente desconhecidas do governo federal vigente, mas esteve na boca de alguns, meio que pela tangente, usado como exemplo. Mas, antes de analisarmos especificamente os trechos da reunião em que o Instituto e o patrimônio cultural são enunciados, nos cumpre salientar que aquela reunião se deu para apresentação de um modelo de retomada econômica para o país após a crise de saúde pública por conta da pandemia do Coronavírus (SARS-CoV-2).

Não é motivo para surpresa que boa parte das narrativas promovidas pela maioria dos ministros defendem o capital privado e diminuem a responsabilidade do Estado brasileiro com o investimento financeiro público nessa retomada. Os ministros Paulo Guedes (Economia), Onyx Lorenzoni (Cidadania), Ricardo Salles (Meio Ambiente), Tereza Cristina (Agricultura, Pecuária e Abastecimento) e Marcelo Antônio (Turismo) falam muito claramente em defesa da política econômica neoliberal, da diminuição do Estado e da “liberdade”. O discurso de “dar fôlego para a iniciativa privada”, reduzindo impostos e modos de regulação encontrou discordâncias, ao menos naquela reunião, apenas do ministro Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional) e de Roberto Campos Neto (Presidente do Banco Central do Brasil) que, em concordância curiosa, apontaram que à luz dos exemplos internacionais, são os Estados que devem ou irão assumir boa parte dos riscos da retomada econômica, e não a iniciativa privada apenas coordenada pelo Estado, como propõem seus colegas de reunião.


No plano apresentado pelo ministro Braga Netto (Casa Civil), o capital contemplado é o privado, não o público, e considera o turismo como uma das ferramentas para a atração do capital privado para o país. Sabemos há bastante tempo, tanto pela hierarquia do governo brasileiro, quanto pelos modelos econômicos recentes, que as cidades históricas, os monumentos, os museus e outras formas de patrimônio são intensamente explorados pelo potencial turístico e, inerentemente, pela sua participação na atração de capital privado interno e externo. Muito curiosamente, o tema do turismo com o patrimônio cultural não foi abordado pelo próprio ministro Marcelo Antônio, responsável pela pasta. O patrimônio esteve na boca de dois participantes da reunião, mas muito mais em tom pejorativo que positivo. Apresentamos e analisamos aqui esses dois momentos, ressaltando que as falas aqui exibidas foram editadas seguindo a norma culta da Língua Portuguesa, às vezes readaptando a construção frasal original para dar a ela mais inteligibilidade e ordem. A transcrição literal da entrevista pode ser acessada no site do G1.


No primeiro caso, o ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente), quando defendia que o governo federal usasse do momento da pandemia e da atenção da mídia ao assunto, citou a chance que o contexto trás para conseguir produzir as entendidas como necessárias “desregulamentações" e “simplificações”, o que mudaria todo o regramento de normas e fiscalizações, chamadas pelo próprio de “infralegal", portanto, aquilo que não se encontra perfeitamente de acordo com os mecanismos legais, ou seja, um eufemismo para ações parcial ou integralmente ilegais. Em seu discurso, quando sublinhou a chance de aproveitar as atenções voltadas à pandemia para “ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas”, Salles citou claramente entre os seus exemplos de estruturas que precisam de mudanças:

De IPHAN, de Ministério da Agricultura, de Ministério de Meio Ambiente, de ministério disso, de ministério daquilo... (SALLES: 2020).

E, mais uma vez, reforçou a ideia de usar o contexto pandêmico para tal de forma orquestrada, além de também preparar uma defesa institucional para as possíveis contraposições a essas ações:

Agora é hora de unir esforços pra dar de baciada a simplificação de regulatório que nós precisamos, em todos os aspectos. [...] e deixar a AGU de stand by pra cada pau que tiver, porque vai ter [...]. [...] mas tem uma lista enorme, em todos os ministérios que têm papel regulatório aqui, pra simplificar. Não precisamos de Congresso. [...] isso aí vale muito a pena. A gente tem um espaço enorme pra fazer (SALLES: 2020).

Em sua fala, defendendo a institucionalização da ilegalidade, Salles muito possivelmente se referia ao processo nada imediato, pois calcado em pesquisa científica séria, responsável e necessária quando da produção de pareceres para o licenciamento ambiental. O licenciamento ambiental é a liberação e acompanhamento na implantação e operação de atividades que utilizam recursos naturais ou que tenham potencial em diferentes níveis de poluição (FIRJAN, 2004: 1). No atual governo, se defende amplamente, já desde a campanha eleitoral, a necessidade da flexibilização das regulamentações – que na prática é apenas um nome menos grosseiro para tornar legal o que hoje é ilegal – sob o nome de desburocratização, havendo, inclusive uma Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital. Sob a bandeira de proporcionar mais agilidade nas liberações e avaliações que dependem da esfera pública para a atividade privada, a defesa vista na fala de Ricardo Salles é uma promessa de diminuir o poder de fiscalização do Estado sobre as atividades particulares, especialmente as que possam trazer algum tipo de dano ao que há algum tempo, mas não mais agora, se entende como necessário de ser protegido pela ação pública, como o meio ambiente e o patrimônio cultural em suas diferentes formas, não permitindo liberdade irrestrita à exploração privada que pode ser danosa aos interesses públicos e favoráveis ao interesse particular de algum indivíduo ou corporação.


Sobre esse comentário a Sociedade de Arqueologia Brasileira redigiu a Nota em Defesa do Patrimônio Arqueológico Brasileiro na qual lembra, entre outras coisas, que a defesa da “flexibilização” defendida pelo ministro Ricardo Salles “significa não só descumprir a Constituição Federal, acordos internacionais e demais legislações vigentes”, registrando o necessário cumprimento de documentos internacionais dos quais o Brasil é signatário, como a Carta de Nova Délhi (1956), as Recomendações de Paris (1962, 1968), a Carta de Veneza (1964), a Carta de Lausanne (1990), a Carta para a Proteção e a Gestão do Patrimônio Arqueológico (1990) e a Carta de Sofia (1996).


O segundo momento em que o Instituto e o patrimônio cultural foram citados na reunião, foi em uma das intervenções do Presidente da República Jair Bolsonaro. A preocupação do presidente na ocasião, já expressada anteriormente, é o potencial do IPHAN de parar qualquer obra no país a qualquer momento. Sem a preocupação de como, quando e por que essa ação acontece, sempre de forma específica dentro de cada contexto, o Presidente ignora as prerrogativas das paralisações de obras e os potenciais ganhos do Estado, portanto, do interesse público, com essas intervenções. Bolsonaro assim expressa sua indignação:

O IPHAN para qualquer obra do Brasil, como parou a do Luciano Hang. Encontra lá um cocô petrificado de índio, para a obra, pô! Para a obra. O que que tem que fazer? Alguém do IPHAN que resolva o assunto, né? E assim nós temos que proceder (BOLSONARO: 2020).

Para o Presidente, a questão no IPHAN, além da paralisação de obras, parece ser a de que não há no Instituto um gestor que “flexibilize” – leia-se: desregulação e obediências aos mandos executivos – as normativas do órgão e também que agilize liberações de toda sorte em favor das obras, aqui citadas em sentido genérico:

O IPHAN, não é? Tá lá vinculado a Cultura. Eu fiz a cagada em não escolher uma pessoa que tivesse, também, um outro perfil. É uma excelente pessoa que tá lá, tá? Mas tinha que ter um outro perfil também (BOLSONARO: 2020).

Nada curiosamente após a reunião, já no dia 11 de maio de 2020, o Presidente, por meio do Ministro Chefe da Casa Civil, então, o próprio Braga Netto, nomeou Larissa Rodrigues Peixoto Dutra para a presidência do IPHAN. O Diário Oficial da União respectivo não leva a assinatura de Marcelo Antônio, responsável pela pasta. Segundo a Folha de S. Paulo, a nomeação da formada em Hotelaria, substituindo a historiadora Kátia Bogéa, encontrou discordância entre funcionários do órgão e de especialistas dada a “aproximação com a ideia de superaproveitamento dos bens históricos e ambientais de Bolsonaro para atrair recursos ao país”. A nomeação nada técnica – e já discutida anteriormente neste Blog – em favor do patrimônio, já uma marca do IPHAN do governo Bolsonaro, nada surpreende se notarmos que já no “Pró-Brasil", apresentado por Braga Netto, o turismo é um dos instrumentos de atração de capital. E, para isso, inferimos, a preocupação da relação entre o patrimônio e sua sociedade local, a preservação e o uso seguro dos espaços patrimonializados, e a exploração turística consciente e não abusiva serão, nas ordens do dia, desconsideradas. A nomeação, ainda, paradoxalmente – mas não espantosamente em nosso contexto – não parece estar de acordo com a proposta do próprio Presidente, editada no Decreto N° 9.727, de 15 de março de 2019, de que as nomeações devem ter caráter técnico, evitando distribuição política de cargos e/ou a valorização de políticas personalistas. Segundo o Correio Braziliense, o Ministério Público Federal cobra explicações do ministro Marcelo Antônio sobre a nomeação e sua (in)coerência com o Decreto N° 9.727.


Ao falar da obra “do Luciano Hang", Bolsonaro fazia menção à construção de uma das lojas da rede Havan, de propriedade do catarinense Luciano Hang, na cidade de Rio Grande no estado do Rio Grande do Sul. Em 07 de agosto de 2019, o mencionado empresário, com sua conhecida bufonaria e toleima, gravou um vídeo e postou em suas redes sociais. Neste vídeo Hang aparece acusando o IPHAN de ter paralisado a obra após encontrar vestígios arqueológicos. Entretanto, no mesmo dia, o IPHAN publicou em seu site oficial uma nota de esclarecimento quanto às acusações do empresário, na qual, afirma que “a obra da empresa Havan, na cidade de Rio Grande (RS), não foi embargada pelo Iphan. A paralisação foi recomendada pela empresa de consultoria em arqueologia contratada pela própria Havan”. Fato que também fora notado pelo colunista Guilherme Amado da Revista Época e também pelo Jornal Nacional da edição do dia 23 de maio de 2020.


Bolsonaro, ao repetir esse disparate na reunião, mais uma vez evidencia a sua mitologia caquistocrática que serve de culto fetichista ao seu séquito de fanáticos, que por consequência reverbera pela lunática realidade digital que sua ideologia se autofagia, e, chega nos telefones de milhões de pessoas. Esses cacos nos olhos da inteligência fazem com que cada piscada seja uma que nos acorda e atormenta. Estamos cegos e com sono.


Sobre isso, o historiador inglês Perry Anderson já alertava em seu livro Brazil Apart, lançado em outubro de 2019, quando comparava Jair Bolsonaro a Donald Trump e marcava o que ele considera a maior diferença entre os dois:

The most salient contrast between the two rulers, however, lies elsewhere. Bolsonaro’s priority, it quickly became clear, is essentially foreign to Trump. His main preoccupation has been to prosecute his version of culture wars, at the expense of any other focus of policy or attention (ANDERSON, 2019: 201).
[O contraste mais saliente entre os dois governantes, no entanto, reside em outro lugar. A prioridade de Bolsonaro, rapidamente ficou clara, é essencialmente estranha à Trump. Sua principal preocupação tem sido continuar sua versão de guerras culturais, às custas de qualquer outro foco de política ou atenção (ANDERSON, 2019: 201, tradução nossa)].

Essa “guerra cultural” que faz parte nuclear da tônica bolsonarista está na boca do Presidente e de muitos de seus ministros na reunião do dia 22 de abril, momento em que o Brasil já enfrentava graves consequências da pandemia. Como escreveu Fernando de Barros e Silva, parece que estamos dento do pesado de Raskólnikov.


Umberto Eco, em uma conferência proferida em 25 de abril de 1995 na Universidade de Columbia, em ocasião das comemorações do cinquentenário da libertação da Europa na Segunda Guerra Mundial, e depois publicada na New York Review of Books no mesmo ano, afirma que o fascismo italiano era uma ditadura, mas não um totalitarismo, precisamente por sua pobreza filosófica. Vai mais além, diz que os fascismos de maneira geral são uma colagem de ideias políticas e filosóficas, forrada de contradições. E faz uma pergunta retórica sobre o fascismo de Mussolini, e que nos nossos dias soa anacronicamente irônica:

Can one conceive of a truly totalitarian movement that was able to combine monarchy with revolution, the Royal Army with Mussolini's personal milizia, the grant of privileges to the Church with state education extolling violence, absolute state control with a free market? (ECO: 1995).
[Pode-se conceber um movimento verdadeiramente totalitário capaz de combinar monarquia com revolução, o Exército Real com a milizia pessoal de Mussolini, a concessão de privilégios à Igreja com educação estatal exaltando a violência, controle estatal absoluto com mercado livre? (ECO: 1995, tradução nossa)].

Eco afirma ainda que há apenas um Nazismo, mas o fascismo é o jogo que pode ser jogado de várias maneiras, mas sem mudar o fato de ser o mesmo jogo. Por isso “Fascism became an all-purpose term because one can eliminate from a fascist regime one or more features, and it will still be recognizable as fascist” (ECO: 1995). [“O fascismo se tornou um termo para todos os fins, porque se pode eliminar de um regime fascista um ou mais aspectos, e ainda será reconhecido como fascista” (ECO: 1995, tradução nossa)]. Por essa razão, nessa conferência proferida por Eco na Universidade de Columbia, ele elenca fatores do que chamou de Ur-Fascism, ou eterno fascismo – e que valem a pena serem cuidadosamente lidos. No qual basta apenas um elemento estar presente para que haja a possibilidade de, em suas palavras, coagulação de um fascismo. Destarte os 14 elementos que Eco elenca – e que assustadoramente quase todos podem ser percebidos sem muito esforço nas vozes da reunião ministerial aqui citada – gostaríamos de apontar apenas os itens:

3. Irracionalismo, dependente do culto da ação pela ação, ou seja, a ação deve ser tomada antes de qualquer reflexão (quase uma re-ação). Pensar é uma forma de emasculação. Os intelectuais, ou qualquer um que pense criticamente nesse caso, é considerado um inimigo destruidor das tradições (ECO: 1995);
4. Desacordo é traição, “Na cultura moderna, a comunidade científica elogia o desacordo como uma maneira de melhorar o conhecimento. Para o Ur-Fascismo desacordo é traição.” (ECO: 1995);
5. Medo da diferença, pois, bem, desacordo é diferença e uma forma de diversidade, portanto, para o Ur-Fascismo a diversidade é o intruso, sendo assim, o Ur-Fascismo é racista por definição (ECO: 1995).

Os membros do governo, ao mirar – verbalmente – na reunião o IPHAN, não estão apenas propondo uma “baciada” de ilegalidades para dar força a interesses econômicos privados, mas estão também deixando transparecer as “coagulações” da qual falava Eco, na qual o Ur-Fascismo é gestado no seio desse “jogo que de mesmo nome”.


Portanto, a reunião publicizada nos mostra não só um projeto econômico neoliberal, que, dentro do espectro democrático de um governo eleito, não apresenta automaticamente qualquer crime em si, mas nos permite tomar conhecimento, também, da consolidação de discursos, ideais e embasamentos que estão no cerne da execução de um governo que se mostra cotidianamente pouco afeito aos princípios democráticos, bem como pouco preocupado com os benefícios promovidos pela ciência. Nas falas dos participantes da citada reunião é nítida a formação de um discurso segregacionista que produz a ideia de um "nós" e de um "eles", sendo o “nós” – o cidadão de bem – atuantes em diferentes escalões do poder executivo do governo federal e também os membros das relações individuais desses agentes públicos, como amigos, protegidos e familiares. Já o “eles” – o comunista – é formado por quaisquer indivíduos que apresentem discordâncias para com as propostas oriundas do estabelecido “nós” que, no caso atual do Brasil, são os cientistas, os defensores dos princípios democráticos, os opositores de qualquer tipo, os defensores dos Direitos Humanos, os promotores de justiça social e outros. É inegável a produção discursiva da diferença entre esses dois grupos, como salienta Lilia Moritz Schwarcz:

“Eles" seriam preguiçosos, corruptos, ladrões, ideólogos, pessoas sem escrúpulos, parasitas, enquanto um grande “nós” funciona apenas na base da contraposição, abraçando tudo que estaria do outro lado da polaridade. O suposto sigiloso é que basta determinar um “eles” para que se evidencie o que seria um “nós” apaziguador, pois correto, justo e exemplar (SCHWARCZ, 2019: 212).

Na reunião ministerial o “nós” é o cerne da discussão, sendo o governo, o governante e a manutenção do “nós” no poder assunto muito mais importante que a pandemia que assola o mundo todo, o que obviamente inclui o Brasil, ou que a própria retomada econômica apresentada por Braga Netto. Exemplos disso são as insistente falas de Jair Bolsonaro sobre a necessidade de que seus ministros se preocuparem não só com as agendas dos seus próprios ministérios, mas também com o jogo político que garante bom status ao grupo, justamente porquê, nas palavras do próprio Presidente: “[...] se eu cair, cai todo mundo”.


A produção de um “nós” e de um “eles” no sentido de estarmos cientes da diversidade e da diferença não traz em si, automaticamente, o uso da potência negativa, segregacionista, cruel e displicente desde que este entendimento esteja fundamentado em pilares de respeito e igualdade. Mas no Brasil contemporâneo isso é um sonho, uma utopia, como podemos ver pela simples observação da prática política atual e, detidamente, no retrato dessa política na reunião ministerial de 22 de abril de 2020. O “nós” estabelecido no núcleo duro do governo Bolsonaro e suas linhagens e apadrinhamentos reduzem a eles mesmos a diversidade brasileira, criando um modelo em si de brasileiro ideal, medindo todo o mundo pela sua própria régua. Essa prática é tão antiga quanto atual, como registrou Alexis de Tocqueville já na primeira metade do século XIX:

Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo: vejo uma multidão incalculável de homens semelhantes e iguais que giram sem repouso em torno de si mesmos para conseguir pequenos e vulgares prazeres com que enchem sua alma. Cada um deles, retirado à parte, é como que alheio ao destino de todos os outros: seus filhos e seus amigos particulares formam para ele toda a espécie humana; quanto ao resto de seus concidadãos, está o lado deles, mas não os vê; toca-os mas não os sente – cada um só existe em si mesmo e para si mesmo e, se ainda lhe resta uma família, podemos dizer pelo menos que pátria ele não tem (TOCQUEVILLE, [1835] 2000: 389, grifo nosso).

A reunião ministerial de 22 de abril de 2020 deixa muito claro o esforço de um grupo autorreferente em se estabelecer – e suas pretensões e métodos também – como normal, aceitável, justo mesmo que isso seja a olhos vistos destoante de toda a construção possibilitada pela democracia brasileira em um passado muito recente. Com a radicalidade que promove uma ruptura inescapavelmente chocante, o grupo que se pretende estabelecido e blindado em seu trono, e que não mede esforços para garantir isso, vive à revelia de tudo e de todos que não estão incluídos em seu espaço de privilégio. Todo o discurso do próprio Presidente em favor de os políticos tomarem conhecimento sobre como vivem os brasileiros, com fome, desemprego e falta de segurança, se esvai sempre que percebemos o franco desmonte da estrutura estatal que valoriza a liberdade de alguns, os que estão no “nós”, e que só lembra da pluralidade, da diferença, quando sente a necessidade de assimilação baseada no seu padrão estabelecido como “O” ideal.


É uma infelicidade, mas, após apresentarmos nossa defesa, a conclusão que temos é que os fundamentos pró-democráticos, pró-ciência, pró-defesa da diversidade sobre a igualdade construídos paulatinamente a duras penas vêm encontrando não só desrespeito como intenção e prática de desmonte sob o véu da agilidade e da potencialização da liberdade (que liberdade?). Outra infelicidade é que temos, os especialistas, os cientistas dedicados ao tema do patrimônio cultural, de defender o que acreditávamos estar consolidado. Ao invés de podermos estender as propostas teóricas e políticas da década de 1980 que falavam em diversificar os entendimentos dotando as diferenças com os mesmos instrumentos democráticos, temos de lutar pela manutenção da própria democracia. E estamos claramente perdendo numerosas batalhas após batalhas, com alguns ganhos tão pequenos quanto motivos de esperança. Como diz a frase atribuída a Bertold Brecht, “que tempos são estes, em que temos que defender o óbvio?”.


Outra infelicidade que julgamos necessário exprimir é que a paranoia coletiva com complexo de superioridade aliado a um profundo complexo de perseguição, com pitadas nada tênues de um nocivo messianismo populista, produto e produtora deste específico grupo não se julga apenas “A" melhor, “A" modelar para o contexto nacional, dentro do qual tem agido de forma violenta e, como apontamos, muito favorável ao segregacionismo grosseiro e vil. Ela também é entendida por esse grupo que orbita um núcleo de cegueira ideológica como um modo positivo para todas as sociedades do mundo, fato esse percebido na fala do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, quando diz descaradamente acreditar, primeiro, que o mundo pós-pandêmico será completamente diferente do mundo pré-pandêmico (e de forma alguma negamos isso) e que, por isso, existe a chance da formação de um conselho internacional que irá “formular a nova ordem mundial”, como no pós-Segunda Guerra Mundial. E, para além disso, em segundo lugar, acredita que o Brasil consegue e tem condições de participar deste seleto grupo “de quatro, cinco, seis países” que irá ditar a "nova ordem mundial". A fala de Araújo é ignorante no sentido em que desconsidera o papel da Organização das Nações Unidas na mediação de temas internacionais e que, por princípio, deveria servir de fórum caso haja a necessidade de debate mundial; e é nociva na seara do patrimônio cultural porque se considera o atual modelo brasileiro um modo a ser repetido mundialmente, o patrimônio, os museus, a pluralidade artística passarão a ser entendidos internacionalmente como barreiras, como problemas, não como forças positivas e espaço de livre expressão e diversidade cultural. Se percebermos o histórico internacional sobre o patrimônio cultural e a Museologia, notamos rapidamente para nosso alívio que esse pensamento homogeneizador é paranoico e está em desuso, apesar de seus recentes suspiros em diferentes países, que esperamos serem os últimos de uma morte breve.


Araújo, cremos, pode acreditar nessa chance de o Brasil participar da construção da “nova ordem mundial” dada sua aproximação de longa data com a ficção. Tanto pela formação em Letras, quanto, e especialmente, pela publicação de três romances, o Chanceler brasileiro deixa pública a sua prática ficcional imaginando cenários que só fazem sentido a ele mesmo, sonhando com diálogos e problemas a partir de sua perspectiva, como mostra o trecho do seu primeiro romance citado por Guilherme Amado em uma matéria na Época: “— Keniv, estou cansado dessa guerra de mentira, precisando de uma guerra de verdade. Ajude-me a inventar uma guerra. Contra o que podemos lutar? / — Deixe-me ver. Contra o sistema. / — Que sistema? / — Nenhum sistema em especial. Contra o sistema em si mesmo”. Não se questiona aqui a possibilidade e a liberdade de Araújo em produzir ficção, com os cenários e contextos mais abstratos e próprios possíveis. Salienta-se, sim, a necessidade de que as relações internacionais brasileiras sejam pensadas e propostas com base na realidade mundial do contemporâneo, não com base nos problemas de Mogar, personagem do primeiro romance, em “inventar uma guerra" – como faz Araújo contra o “marxismo cultural” – ou nas possibilidades de Xarab, terra fictícia do seu segundo romance.


A criação desse núcleo “duro”, mas que sabemos ser tão volátil quanto são as alianças políticas, em torno do qual orbitam seus membros, que não só se alimentam do núcleo, como também o produzem, não é anormal na formação de coletividades no meio social e político. A filosofia recente, desde o fim do século XX, considera em primeira ordem as formações contextuais de elos e seus rompimentos quando da alteração dos contextos. Entretanto, a forma como se pretendem superiores é que apresenta venenosas possibilidades, carcomida por dentro de forma que quando notamos a ferida (as falas da reunião ministerial), a doença (a democracia em frangalhos) está em estágio avançado e em franco desenvolvimento sobre quaisquer tecidos que faltem. Em exemplo atual: a tosse seca, a febre e a falta de ar só aparecem e tornam a enfermidade visível após, em geral, cinco ou seis dias do contágio pelo Coronavírus. Antes disso o organismo já estava infectado e as alterações necessárias para a apresentação de sintomas já estavam em operação, mas silenciosamente, sem gerar muito alarde. Novamente em Umberto Eco encontramos uma explicação sobre a pretensão de superioridade tão clara e defendida pelo Chanceler do Brasil, que parece desconsiderar as chagas:

Elitism is a typical aspect of any reactionary ideology, insofar as it is fundamentally aristocratic, and aristocratic and militaristic elitism cruelly implies contempt for the weak. Ur-Fascism can only advocate a popular elitism. Every citizen belongs to the best people of the world, the members of the party are the best among the citizens (ECO: 1995).
[O elitismo é um aspecto típico de qualquer ideologia reacionária, na medida em que é fundamentalmente aristocrática, e o elitismo aristocrático e militarista implica cruelmente desprezo pelos fracos. O Ur-Fascismo só pode advogar um elitismo popular. Todo cidadão pertence às melhores pessoas do mundo, e os membros do partido são os melhores entre os cidadãos (ECO: 1995, tradução nossa)].

Por fim, um último ponto que apresenta não só uma infelicidade como também uma preocupação: na reunião aqui analisada, entre um rompante de gritos, socos na mesa e palavrões e outro, o Presidente Jair Bolsonaro lembrou com orgulho parecendo tentar encorajar seus ministros enquanto apontava para eles: “o destino do Brasil está nas mãos desse grupo privilegiado". Sabemos disso. São as garantias constitucionais de um governo eleito. Mas também sabemos, mais do que nunca, que isso também garante a necessidade de nossa vigilância contínua, de nosso apreço cotidiano pela garantia da democracia e de nossa incansável luta em nome da extensão tanto quanto possível da referência do pronome “nós” (RORTY, 1997: 39), hoje usado por um grupo particular como se este representasse de fato a universalidade de toda diferença que forma essa ideia abstrata e nunca suficiente de povo brasileiro.


____________________

* Felipe Augusto Tkac e Luciano Chinda Doarte são professores, historiadores e coordenadores do Grupo de Estudos e Pesquisas em Patrimônio Cultural (GEPPC).


____________________

REFERÊNCIAS


ANDERSON, Perry. Brazil Apart: 1964-2019. London and New York: Verso. 2019.

ECO, Umberto. Ur-Fascism. The New York Review of Books, New York, V. 42, Nº 11, June 22, 1995. Disponível em: <https://www.nybooks.com/issues/1995/06/22/>. Acesso em 23 de maio de 2020.

FIRJAN. Manual de Licenciamento Ambiental: guia de procedimento passo a passo. Rio de Janeiro: GMA, 2004.

RORTY, Richard. Objetivismo, Relativismo e Verdade. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o Autoritarismo Brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

TOCQUEVILLE, Alexis de. A Democracia na América: Livro II: sentimentos e opiniões: de uma profusão de sentimentos e opiniões que o estado social democrático fez nascer entre os americanos. São Paulo: Martins Fontes, [1835] 2000.

 
 
 

Comments


bottom of page