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Ser e Continuamente Não Mais Ser

  • Foto do escritor: GEPPC
    GEPPC
  • 3 de abr. de 2021
  • 6 min de leitura

Ser e Continuamente Não Mais Ser

memória e reconhecimento no patrimônio enquanto marco



Por Luciano Chinda Doarte*


"Todavia, as marcas se dão e configuram um marco porque a partir deles o modo de ser e estar sofre alterações obrigatoriamente."

Casa de Passados VI, 2021, Luciano Chinda Doarte

211 cm X 141 cm, fotografia digital, coleção particular


O fato de o Palacete Ordine ser a sede do Museu Municipal Atílio Rocco, em São José dos Pinhais/PR, após ter sido sede dos poderes estabelecidos (executivo, legislativo e judiciário), isto depois de ter pertencido a uma família da elite local, não tem nada de atípico nas práticas de patrimonizalização executadas desde o século XVIII. Este modo de operar culturalmente é já tradicional dada a repetição. Mas o mundo de cultura ocidental globalizada no Brasil tem cobrado há algumas décadas certas alterações na gestão da memória social e no reconhecimento das diferenças sociais que, se levadas ao fim e a cabo, produziriam mágoas tão profundas no patrimônio tradicional-humanista-moderno-eurocentrado que este não seria mais o que e como é.


Que o patrimônio enquanto ativo cultural eurocentrado é, em seus termos, apesar do discurso, segregador e estabelecedor de “mais merecedores” e “menos merecedores” está posto há algum bom tempo. Apenas para ilustrar, lembro aqui os exemplos dos modos de representação de não brancos a partir da perspectiva branca no patrimônio, mormente dada pela chave da escravização moderna mercantil, possibilitadora não só de todo o empreendimento colonial português no Brasil, mas também da constituição da própria sociedade brasileira do século XXI, a partir da manutenção do racismo estrutural (ALMEIDA, 2020). Este é apenas um de inúmeros exemplos cotidianos de uma estrutura de funcionamento que divide ao mesmo tempo em que promete falar de tudo e de todos, em passado, memória, história, cultura, estética, etc.


Este é um modo de ser, nutrido por um modelo de memória – ou de processar certa memorialização das coisas – e que garante apenas uma operação patrimonial, uma forma de elevação dos status culturais, uma proposta de expansão da dignidade cultural. Outros são possíveis, por certo, a partir das alterações na estrutura patrimonial hegemônica.


A partir deste ponto de vista, recupero alguns pressupostos teóricos que auxiliam a pensar estas possibilidades de alteração e suas motivações. O primeiro pressuposto é que as formas de relação com o passado por meio da memória eleitas por cada forma de organização social estão contextualmente relacionadas a estes contextos sociais (ASSMAN, 2011). E sendo assim, produzir um ativo cultural como o patrimônio, e tudo o que ele significa, é algo próprio de um mundo de cultura ocidental, republicana, moderna e liberal (assumindo, ainda, que alterações ao longo dos processos históricos aconteceram, mas que não tiveram forças para alterações tão dramáticas).


O segundo pressuposto é que a prática do reconhecimento [das diferenças, da diversidade sociocultural] não é e nem pode ser um movimento que legitima alguma presença no jogo das negociações políticas como algum atendimento e/ou preenchimento de certa expectativa sobre esta e que, por isto mesmo, as diferenças se encontrariam no seio de uma diversidade preestabelecida (o que seria a contradição dos termos). O reconhecimento demanda, isto sim, a mudança na ordem vigente até então. O reconhecimento empurra a tudo e a todos a um novo modo de ser e estar por conta do próprio reconhecimento. Nas palavras de Vladimir Safatle:


Reconhecimento não é re-cognição. Reconhecer alguém ou reconhecer algo não é uma operação simples de re-cognição, como se eu tivesse, então, já a imagem desse algo, a imagem desse alguém, e ficasse comparando: “deixa eu ver se ele está aqui ou se ele não está”. [...] Reconhecimento é um processo através do qual eu integro no meu campo de existência algo ou alguém que até então não existia neste campo, e por isso o campo muda. Não é só que você integrou um novo elemento, o campo muda. Porue se o campo existiu até agora expulsando aquele que não estava reconhecido, [...] é porque não foi por acaso, [...] tinha uma razão, tinha uma linha de força tentando preservar uma certa configuração deste campo. Reconhecer é, necessariamente, transformar não só aquele que é reconhecido, mas principalmente aquele que reconhece (SAFATLE, 2019).

O terceiro e último pressuposto é que o patrimônio, bem como o reconhecimento, atua como marco de profundidade impossível de ser mensurada antes que se realizem. Dizer isso é tomar como ótica metodológica a ideia de que o estabelecimento de um novo patrimônio – de qualquer tipo – e que as práticas de integração de uns, os marginalizados, ou outsiders, nas palavras de Norbert Elias (1994) – prática que pode ajudar a alimentar uma lógica de segregação entre “nós” e “eles” (SCHWARCZ, 2019: 212) –, no espaço já ocupado por alguns outros promove uma marca no processo histórico em desenvolvimento. É óbvio que o estabelecimento destas marcas faz parte do próprio processo histórico, porque não são intervenções extraterrenas ou da Divina Providência. Todavia, as marcas se dão e configuram um marco porque a partir deles o modo de ser e estar sofre alterações obrigatoriamente. Este ato de configuração de um novo patrimônio e este movimento de integração do antes não integrado são um divisor de águas, em certa medida, ao mesmo tempo em que ganham potência de memorialização em si e partir de si, dada a característica da existência de narrativa, subjetividade, experiência que cada contexto e cada existência possui.


Isto posto, a proposta é refletir a partir destes pressupostos e, na medida do possível, dentro deles mesmos, sobre como as práticas de reconhecimento demandam certa alteração das atuações memorialísticas e das existências patrimoniais. Não se perde de vista que estes são processos conscientes e carregam consigo impulsos de incidência política sobre suas realidades (SCHINDEL, 2009: 67).


É neste sentido que um Estado promover ou não promover políticas culturais de reconhecimento da diversidade (o reconhecimento substantivo, não o reconhecimento meramente formal) e estender sua influência para outras áreas da vida social, estética, simbólica e formal é sempre um ato consciente, de eleição não só de prioridades, mas também de projeto de realidades em si.


Novamente: a forma racializada e racista do projeto histórico hegemônico do patrimônio não é fruto do acaso, é forma fundamental desta constituição mesma. Noutro exemplo, podemos pensar no privilégio dado no campo patrimonial às realidades econômicas de maior poderio em cada contexto. É muito comum vermos palacetes, casarões, casas-grandes patrimonializados – pelos mais variados motivos – ao mesmo tempo em que casebres, barracos ou outras residências mais populares, mais numerosas, e por isso mais corriqueiras, e de relações íntimas a realidades com menor poderio econômico não figuram nos filões do patrimônio. Nas palavras de Mário Chagas:


As relações estreitas entre a institucionalização da memória e as classes privilegiadas têm favorecido esta concepção museal [de celebração da memória do poder]. Não é fruto do acaso o fato de muitos museus estarem fisicamente localizados em edifícios que um dia tiveram uma serventia diretamente ligada a estâncias que se identificam e se nomeiam como sedes de poder ou residência de indivíduos “poderosos” (CHAGAS, 2002: 64).

Ocorre aqui explicar que ao se apontar a habitual não patrimonialização de residências mais populares como uma marca comum e elitista do modo de operação tradicional do patrimônio não se quer incorrer na possibilidade de gerar uma romantização da precarização do direito à moradia, que afeta também as garantias da dignidade humana. Patrimonializar a estrutura precária de habitações em favelas, áreas irregulares e/ou com maiores riscos socioambientais seria uma catástrofe romântica legitimada pelo Estado em nome da estética ou da mera inclusão. Não é disso que falo. O que aponto é que a própria pouca flexibilidade em se patrimonializar residências não relacionadas às formas de elite é em si um sintoma.


Este e outros sintomas não devem passar abaixo dos radares da pesquisa, da atuação profissional e do ensino na área do patrimônio cultural. Estes sintomas são gerados a partir de marcos na prática patrimonial e vice-versa, por isso constituem como pressupostos os modos de patrimonialização, legitimidade ou obliteração das diferenças, reconhecimento substantivo ou mero discurso de reconhecimento (quando há).


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* Luciano Chinda Doarte é professor, historiador e um dos coordenadores do Grupo de Estudos e Pesquisas em Patrimônio Cultural (GEPPC). Atualmente também é presidente do Conselho Municipal do Patrimônio Cultural de São José dos Pinhais.


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REFERÊNCIAS


ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. São Paulo: Editora Jandaíra, 2020.

ASSMAN, Aleida. Espaços da Recordação: formas e transformações da memória cultural. São Paulo: Editora da Unicamp, 2011.

CHAGAS, Mário. Memória e Poder: dois movimentos. Cadernos de Sociomuseologia, V. 19, N. 19, 11. 2002. P. 43-81. Disponível em <https://revistas.ulusofona.pt/index.php/cadernosociomuseologia/article/view/367>. Acesso em 3 abr. 2021.

ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador I: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.

SAFATLE, Vladimir. Presente, Pós-Verdade e Experiência de Passado. Sesc São Paulo, 16 set. 2019. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=E9GWv_ymJeQ&t=2425s>. Acesso em 3 abr. 2021.

SCHINDEL, Estela. Inscribir el Pasado en el Presente: memoria y espacio urbano. Política y Cultura, primavera 2009, n. 31. P. 65-87.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o Autoritarismo Brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

 
 
 

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