Uma ilha idílica
- GEPPC
- 22 de mai. de 2020
- 8 min de leitura
Uma ilha idílica
Tecnologia, mundo digital e desigualdades
Por Luciano Chinda Doarte*
“Galileu ou o franciscano na pintura pouco fariam com o globo terrestre e com o compasso se não soubessem o que é e como usá-los.”

Galileo en la Universidad de Padua demostrando las nuevas teorías astronómicas, 1873, Félix Parra
184,5 cm X 166,9 cm, óleo sobre tela, Museu Nacional de Arte do México
A obra de Félix Parra, que no mundo harmonicamente moldado seria pró-ciência em quaisquer condições e, assim, veria nela algo fundamentado, crível e sério como o é, nos apresenta Galileu explanando suas ideias sobre as formas celestes e a organização do universo a um franciscano. Entre as afirmações de Galileu, baseado em suas observações e experimentos fundamentado em densos estudos sobre o tema, que agiam contra os saberes – à época estabelecidos – aristotélicos-ptolomaicos, o cientista falava de crateras e “vales” na Lua e, especialmente, que a Terra e os outros planetas de seu sistema é que rodeavam o Sol, e não os demais planetas e astros rodeavam a Terra. Bem, em 2020 ainda lembramos do que aconteceu a Galileu por ir contra a ordem estabelecida.
Sabendo da história, uso aqui de uma leitura metafórica que faço sobre a imagem: Galileu usa como instrumento de apoio, como material didático, como demonstrativo de sua ideia um globo terrestre sobre a mesa em sua frente, talvez para justificar como e por que as coisas se davam como ele observou. A questão é que com o globo e os instrumentos necessários, como o compasso e os livros, Galileu tem o mundo nas mãos, tem o planeta em sua frente e, assim, pode saber dele mesmo de dentro de sua casa, olhando por uma janela ou claraboia ou o que quer que seja. Essa é a leitura que saliento: o mundo nas mãos e, a partir disso, o acesso a coisas que nos escapam fisicamente por diversos motivos.
Quatrocentos anos depois do nascimento de Galileu Galilei, o mundo passava a se ocupar em desenvolver um material hoje amplamente difundido, extremamente potente e com forças em si e sobre ele que o homem muito possivelmente não previu ao criar: a tecnologia eletrônica. Mais próximo do fim do século XX, ainda, vimos essa potência aumentar incontrolavelmente com a possibilidade de um mundo digital, abstrato, impalpável, mas ativo e meio para muitos fins: a rede mundial de computadores. Uma força sem tamanho e um instrumento para fins desde a educação até a destruição de cidades inteiras, a internet se apresenta diariamente como uma promessa por um mundo mais conectado consigo, conectando seus agentes empíricos e estes a espaços que apenas são possíveis dentro da própria internet, como as redes sociais.
No mundo do patrimônio cultural, dos museus e das artes essa tecnologia é um aparato com diferentes possibilidades de uso, mas que, como assevera a constituição teórica dos museus, ainda mais em um contexto democrático, certamente pode proporcionar alguma democratização dos temas e dos acessos que sem ela não seria viável. A obra que citei no começo deste texto faz parte do acervo de um museu no México, cujo nunca visitei e nem sei se a obra está exposta, mas que soube da existência e tive acesso enquanto escrevia confortavelmente em casa. Isso não nos permite esquecer nem do paradigma de custódia dos museus desde o surgimento de suas formas modernas, nem do paradigma da democratização via internet, como diz João Rua:
Entendendo as instituições de memória como sistemas de informação com o objetivo partilhado de disponibilizar informação e inseridas num paradigma pós-custodial, é fundamental não esquecer as origens custodiais das mesmas, pois a necessidade de preservar o património cultural não só se mantém como assume um papel ainda mais relevante (RUA, 2017: 204).
Esse movimento de uso da tecnologia sobre o patrimônio cultural não é recente e, aliás, caminha para o seu centenário, tendo como início o pós-Segunda Guerra Mundial, as inovações científicas e os esforços internacionais capitaneados pela UNESCO (PINTO, 2009). Com variados métodos, encontramos hoje, especialmente sobre as democratizações do patrimônio pela tecnologia, visitas remotas a muitos museus do mundo no modelo street view, bases de dados com muitas coleções digitalizadas e disponibilizadas na internet, atividades produzidas e endossas nas redes sociais como o Museum Selfie Day, entre outras.
A digitalização dos acervos, por exemplo, frequentemente é lembrada para pensar tanto a melhoria nas possibilidades de acesso quanto a preservação mesmo que digitais dos bens patrimonializados e musealizados. É claro que um arquivo digital pode preservar a imaterialidade, a “aura” do bem digitalizado, mas não resolverá a preservação como um todo que, por sua vez, ainda passa por protegermos o bem materialmente, proposta que encontra empecilhos no Brasil, como apontou o jornalista João Paulo Vicente no ano do incêndio no Museu Nacional do Brasil:
No Museu Nacional não havia uma política única de digitalização do acervo, assim como não havia padronização na maneira de armazenar esse material. Iniciativas do tipo eram realizadas de maneira descentralizada por curadores de cada coleção. Nada que não seja comum no Brasil. O Instituto Brasileiro de Museus nunca publicou cartilha sobre digitalização de acervos. Já o Smithsonian, maior complexo de museus do mundo com uma coleção de 138 milhões de itens, lançou em 2010 um programa de digitalização do acervo (VICENTE, 2018).
Mas, como sabemos, nem tudo são flores, e essas promessas existem, mas certamente ainda não alcançam todas as pessoas como deveriam. Antes de falar sobre isso, sublinho que não é uma invalidação da atividade tecnológica no patrimônio, nos museus e nas artes o que faço aqui, mas, sim, uma atenção às desigualdades ainda perenes em nossas sociedades, alinhado com a proposta do Dia Internacional dos Museus deste ano sobre Museu para a Igualdade: diversidade e inclusão (sobre o qual comentei anteriormente).
Em um estudo sobre os anos de 2001 a 2005, segundo o Observatório do Direito à Comunicação, a Rede de Informação Tecnológica Latino-Americana demonstrou que no Brasil a internet chegava a 62,9% das residências e que esse número era consideravelmente inferior ao de outros países da América Latina com condições socioeconômicas parecidas, e, como disse Patricia Peiró, em um mundo tão conectado no qual a tecnologia eletrônica e digital é tão patente:
O acesso à internet pode marcar a diferença entre a exclusão social e a igualdade de oportunidades. Se não forem adotadas soluções, aumentará a disparidade existente entre os países mais desenvolvidos e as nações em desenvolvimento (PEIRÓ, 2017).
Com a desigualdade na oportunidade de acessar as tecnologias e o que elas possibilitam pelas suas “janelas” online, benefícios há muito conhecidos por todos e ignorados pelos que os têm são tolhidos, como poder visitar o Museu Nacional de Arte do México do conforto de casa. Não se pode perder de perspectiva que a inclusão ou a exclusão digital são fatores produto-produtores da inclusão também em níveis de sociabilidade (MATTOS; CHAGAS, 2008: 88), e que, por isso, em nosso contemporâneo significa também considerar os níveis de instrução formal e os níveis financeiros do público considerado. Aliás, sobre o “público considerado”, no Brasil, segundo a jornalista Mariana Tokarnia, baseada na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – Tecnologia da Informação e Comunicação 2018, do IBGE, um em cada quatro brasileiros não possui acesso à internet (cerca de 46 milhões de pessoas) e:
[...] o percentual de brasileiros com acesso à internet aumentou no país de 207 para 2018, passando de 69,8% para 74,7%, mas [...] 25,3% ainda estão sem acesso. Em áreas rurais, o índice de pessoas sema cesso é ainda maior que nas cidades, chega a 53,5%. Em áreas urbanas é 20,6% (TOKARNIA, 2020).
Os números recentes mostram que a inclusão digital, uma das formas de inclusão que precisam ser consideradas pelos museus em nosso contexto de mundo digital e digitalização, ainda é débil. Ainda, essa inclusão não pode ser apenas instrumental, uma vez que dar acesso à internet garante nada além de dar acesso à internet. Ou seja, possibilitar um equipamento e um acesso estável ao mundo conectado não garante o conhecimento de quem usa, não automaticamente coloca o indivíduo em igualdade com outro que tem em seu passado experiências próximas com a tecnologia de diferentes formas e com variadas razões, portanto:
[...] inclusão digital não significa o simples acesso ao computador ou à internet, tampouco a reprodução de cursos de cunho profissionalizante, mas, sim, na proposta de atividades que considerem os recursos das novas tecnologias como fomentadores de autonomia e protagonismo. Dessa forma, a inclusão digital aponta para uma dimensão que privilegia a forma de acesso, não somente o acesso em si, e que tem como base e finalidade a construção e a vivência de uma cultura de rede3 como elementos fundamentais para o exercício da cidadania na sociedade contemporânea (MELLO; TEIXEIRA, 2009: 42).
No mundo patrimonial e museológico isso coloca necessárias considerações altamente reflexivas, pois, de que adianta a disponibilização de toda uma coleção ou a digitalização de inúmeros monumentos se o todo democrático não tiver conhecimento sobre como acessar? Por onde acessar pode ser uma resposta fácil: a internet via tecnologia eletrônica, mas como? Quem atua na área cultural em museus, bibliotecas e patrimônio bem sabe que, em muitas vezes, as bases de dados que guardam e disponibilizam o material online não são automaticamente intuitivas sobre o uso. Os caminhos eletrônicos para se acessar um documento, uma imagem ou uma peça podem ser complexos e apresentar-se como uma barreira a ser superada.
A Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do Brasil é um exemplo, a meu ver. Historiadores, bibliotecários e profissionais afins possivelmente veem nela a maravilha que é pela facilidade de acesso à coleção de jornais e revistas materialmente localizada no Rio de Janeiro. Mas, e um estudante menos instruído ou um interessado que não acessou o ensino sobre as tecnologias, acessaria os diferentes campos e abas com facilidade? O Google Arts&Culture é, acredito, um exemplo de acesso facilitado pela barra de pesquisas, mas o número de resultados das buscas geralmente é imenso, com exposições, coleções disponíveis, museus, separados por data, cores, movimentos artísticos, influências, temáticas, etc. Um interessado que não seja um pesquisador das áreas culturais provavelmente encontra dificuldades em refinar sua pesquisa e, sublinho, a falta de educação sobre a ação no mundo digital pode ser a culpada.
Nesse sentido, a tecnologia digital ajuda, mas não resolve o problema da democracia no acesso. Galileu ou o franciscano na pintura pouco fariam com o globo terrestre e com o compasso se não soubessem o que é e como usá-los. Ter o mundo nas mãos ou ao acesso quase que instantâneo pelos computadores, smartphones, relógios e outros aparelhos não dá automaticamente toda uma preparação necessária para o acesso melhorado e consumo consciente do que é possível. É preciso saber que ter a Lei Áurea digitalizada não possibilita menos preocupação com a preservação material do papel que a suporta. É necessário entender como funcionam bases de dados, quais caminhos levam aos resultados, o que as nomenclaturas nos dizem fora do mundo digital. É imprescindível saber manejar um telescópio e como focalizar suas lentes para observar por muito tempo e definir que o centro do nosso sistema é o Sol, não a Terra.
Ocorre que as políticas públicas para a cultura no Brasil mal dão conta do que os séculos XVIII e XIX propuseram, a preservação radical dos materiais musealizados – nos basta lembrar dos muitos exemplos de “acidentes previstos” em instituições no país –, quiçá alinhá-la com as propostas desenvolvidas no fim do século XX – (re)democratização, acesso, inclusão, tecnologia digital, desenvolvimento autônomo do indivíduo. Isso tudo, novamente, justifica a temática do Dia Internacional dos Museus, porque a inclusão está pouco consolidada e em um campo de idilismo no qual privilegiados pouco percebem as lacunas que os separam de milhões de pessoas sem acesso ao equipamento e ao conhecimento para usá-lo.
____________________
* Luciano Chinda Doarte é professor, historiador e um dos coordenadores do Grupo de Estudos e Pesquisas em Patrimônio Cultural (GEPPC).
____________________
REFERÊNCIAS
ESTUDO Revela Desigualdade Digital no Brasil. Observatório do Direito à Comunicação, s.l., 28dez.2007. Disponível em <http://www.intervozes.org.br/direitoacomunicacao/?p=20154>. Acesso em 20mai.2020.
MATTOS, Fernando Augusto Mansor de; CHAGAS, Gleison José do Nascimento. Desafios para a Inclusão Digital no Brasil. Perspectivas em Ciência da Informação, v. 13, n. 1, jan.-abr. 2008. P. 67-94.
MELLO, Elisângela de Fátima Fernandes de; TEIXEIRA, Adriano Canabarro. Um Processo de Inclusão Digital na Hipermodernidade. In: TEIXEIRA, Adriano Canabarro; MARCON, Karina (orgs.). Inclusão Digital: experiências, desafios e perspectivas. Passo Fundo: Ed. Da Universidade de Passo Fundo, 2009.
PEIRÓ, Patricia. Acesso à tecnologia: o novo indicador de desigualdade. El País, Madri, 17dez.2017. Disponível em <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/12/05/tecnologia/1512475978_439857.html>. Acesso em 20mai.2020.
PINTO, Maria Manuela. PRESERVEMAP: um roteiro da preservação na era digital. Porto: Afrontamento, 2009.
RUA, João. Digitalização, Preservação e Acesso: contributos para o projeto Museu Digital da U.PORTO. Páginas a&b, 3ª série, nº especial, 2017. P. 199-229. Disponível em <http://ojs.letras.up.pt/index.php/paginasaeb/article/view/2666>. Acesso em 20mai.2020.
TOKARNIA, Mariana. Um em cada 4 brasileiros não tem acesso à internet, mostra pesquisa. Agência Brasil, Rio de Janeiro, 29abr.2020. Disponível em <https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-04/um-em-cada-quatro-brasileiros-nao-tem-acesso-internet>. Acesso em 20mai.2020.
VICENTE, João Paulo. Arquivos digitais podem ajudar museus a preservar acervos? UOL, São Paulo, 18set.2018. Disponível em <https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2018/09/16/a-digitalizacao-resolve-os-problemas-dos-museus.htm>. Acesso em 20mai.2020.
Comments