Desvelar as feridas e ver as mágoas
- GEPPC
- 13 de mai. de 2020
- 8 min de leitura
Desvelar as feridas e ver as mágoas
Sobre a necessidade dos temas sensíveis em museus
Por Luciano Chinda Doarte*
“Não é dar o auge da arte pela arte em sua máxima extensão [...]. É politizar a produção museológica em prol do necessário compromisso ético destes em sua posição na sociedade.”

Diomedes Devoured by Horses, 1866, Gustave Moreau
21,4 cm X 19,7 cm, aquarela sobre grafite, The J. Paul Getty Museum, Los Angeles
Longe de ser uma representação que abrace e acalente a subjetividade humana espectadora por meio da arte confortável ou acolhedora, Diomedes Devoured by Horses, de Gustave Moreau, é notadamente violenta, sensivelmente dramática, brumosamente misteriosa e incomodamente desconfortável.
Na mitologia grega, Diomedes, filho do deus Ares e da ninfa Cirene (ou Pirene), era rei de um povo guerreiro que habitava a Trácia, na beira do Mar Negro, e dono de quatro éguas bastante violentas que se alimentavam de carne humana e passavam os dias a aterrorizar os moradores de diferentes regiões a mando do rei e, em especial, estrangeiros (GRIMAL, 2005: 120). Sobretudo, Diomedes tem ainda mais fama por ter sido citado nos mitos sobre Hércules, sendo que o oitavo trabalho deste último era justamente domar e capturar as éguas que matavam pessoas para delas se alimentarem. Há duas versões sobre o resultado do encontro entre Diomedes e Hércules, mas, pela obra, podemos notar que Moreau assumiu em seu trabalho a que aponta um fim triste, violento e sanguinolento do dono das feras que soltavam fogo pelas ventas:
Outra tradição diz que Héracles matou Diomedes abandonando-o às suas éguas, que o devoraram. O herói levou depois os animais a Euristeu, que os consagrou a Hera. Os seus descendentes existiam ainda no tempo de Alexandre Magno (ibid.).
A cena dolorosa representada no século XIX (momento frutífero das representações nas artes visuais, especialmente na pintura, dos mitos clássicos), se bem observada, parece nos remeter a sons e sensações desconfortáveis que não seriam, provavelmente, nossas eleitas nem em experiência prática, sequer em contemplação do belo. Hércules observa entre as duas colunas do fundo, enevoado, longe ao mesmo tempo que observando a cena com tranquilidade e paciência. Diomedes, no centro iluminado, está cercado por seus animais, as éguas Podargo, Lâmpon, Xanto (ou Janto) e Deino, que cuidam de eliminá-lo como fizeram com tantos outros antes dele.
O rei tem a perna direita, na coxa, e o braço esquerdo, quase no ombro, agarrados pelos dentes dos animais que fazem ali o que sabem de melhor. O sangue já lhe escorre o corpo. Sangue vermelho e escuro que pode ser também o que preenche a poça perto da cena central, com um corpo sem vida e sem identidade caído no canto inferior direito.
Já se observarmos o rosto de Diomedes, contextualizado, com atenção profunda e a medida necessária de imaginação, talvez possamos ouvir o grito já amiudado pelo desespero e por alguma noção do fim. Ou ainda notar já a falta de vida, tornado objeto trabalhado pela boca dos animais. A dor do corpo frágil, a brutalidade do movimento, a finitude humana, o tecido orgânico rasgado. A violência está retratada com seus caracteres que lhe dão sentido. O contraste das cores do fundo que tem algo de borrado pela névoa com a clareza da cena que se quer mostrar garante a atenção ao drama do fim.
Esse modo de mostrar uma dor, uma sensibilidade desconfortável talvez nem toque as raias do questionamento sobre um museu – lugar de contemplação, do belo, da fuga do cotidiano (como abordei antes) –, mostrar justamente o que a obra mostra: uma dor, uma sensibilidade desconfortável. E se não alcança o vacilo, isso se dá porque está de saída protegido pela camada semântica da arte, do bem cultural, do produto de um artista e isso, quer se queira ou não, responde há muito tempo um sem número de hesitações logo de saída.
Com isso, apontando para o contemporâneo, saliento que os museus podem, precisam e devem se ocupar dos temas sensíveis da sociedade. Devem se ocupar das dores, das brutalidades, das violências, não só do conforto e das benesses da cultura em suas variadas formas. Podem na medida em que elegem suas prioridades temáticas, precisam na medida em que isso lhes dá um caráter ainda mais complexo de tentativa de completude e devem na medida em que suas ações são inerentemente políticas e observam e produzem ação e reação na sociedade, seja na circunscrição territorial, na teoria da arte e da museologia ou no campo artístico-cultural.
Esse tratamento, esse vislumbre das dores sociais nos museus não deve ser confundida com qualquer tentativa de solução de problemas, quaisquer que sejam, de antemão. É, antes de mais nada, jogar luz sobre algo que está debaixo dos narizes de todos no cotidiano, mas que por algum motivo não é privilegiado em todos os fóruns da sociedade. Como apontou Karl Erik Schøllhammer, ao falar da obra Apagamentos de Rosângela Rennó, não há no trabalho da artista e nem deve haver em princípio nos museus – e é aí que transporto aos museus e a necessidade de se abordar temas sensíveis neles – qualquer vontade de solução desses problemas ou de atribuir culpa ou de encontrar engrenagens que mantém o tema sensível como tal, o problema social como se apresenta. Se isso acontecer, pode acontecer em um segundo momento. A questão é que o que os museus podem fazer, como Rennó, não é "recuperar ali sentido nenhum; somente é possível expor a ferida amarga sem possibilidade de redenção" (SCHØLLHAMMER, 2013: n.p.).
Já em segundo momento, há de se pensar inerentemente que tornar visíveis os temas sensíveis não pode ser uma operação apenas de publicização da coisa, uma vez que se o problema apresenta falhas no funcionamento esperado "normal", apenas tornar público pode criar a ilusão de que o modo de operação problemático faz parte do normal. Usando de seu potencial científico e de seu potencial de poder simbólico na sociedade, o museu deve "historicizar a experiência" (SCOTT, 1999: 14) para tentar tanto quanto possível analisar e dinamizar também uma ideia sobre como e por que o tema sensível alcançou tal patamar. Não naturalizar a coisa abordada garante que não pensemos que algo sempre esteve lá:
Significa, isto sim, supor que o surgimento de uma nova identidade [ou de um problema social ou de um tema sensível] não é inevitável e determinado, não é algo que sempre esteve lá esperando para ser representado, muito menos algo que sempre irá existir na forma que lhe foi dada em um movimento político específico ou em um momento histórico particular (SCOTT, 1999: 15).
Tratar o assunto crítica e seriamente garantirá menos chances de naturalizar a falha de comportamento, de funcionamento ou de ação/reação. Atentar-se aos modos simbólicos de execução de uma sensibilidade social poderá trazer a chance da busca por resolução, o que não se dá por si, automaticamente, ao tornar pública a estrutura falha. Nesse sentido, é a elaboração da função museológica na sociedade que dá o teor de criticidade essencial e a visão consciente do presente, estética e não anestésica da realidade circundante, ativo em seu caráter político que, espera-se, seja em prol do respeito, da diversidade e da democracia e não passivo, destoante da dinâmica do mundo.
A ideia que defendo é que ao abordarem-se sensibilidades sociais, portanto coletivas, nos museus, não se deve dar a essa atividade o "'mal de arquivo' e da tendência contemporânea de acumular memória, na medida em que apaga sua textualidade documental e o converte em documento desse apagamento" (SCHØLLHAMMER, 2013: n.p.), mas, sim, ter consciência do espaço de poder que constitui o museu de modo teórico e um museu de modo da existência real e prática, por mais que haja despreocupação sobre essa força que é inerente a essas instituições desde suas primeiras apresentações modernas. Ou, mais especificamente, como tratou Paul Ricoeur ao falar da relação entre lembrança e imagem:
Certamente, dissemos e repetimos que a imaginação e a memória tinham como traço comum a presença do ausente [...] (RICOEUR, 2007: 61).
Entender que a atividade que visa a "presença do ausente", seja ao falar do passado histórico, da pessoa já morta ou de um tema que há, mas está abaixo da visão privilegiada dos temas públicos sobre os quais se fala, apesar de necessário, é ter noção da abordagem de coisas que não mais são, que foram e que essa falta pode ser dolorosa por diferentes razões. É, ainda, ter aos olhos de quem produz, especialmente da tecnocracia, a venal ideia de que os temas sensíveis têm um constructo que os possibilita estarem como estão em um dado presente e que trazer à tona a violência, por exemplo, pode ser lembrar de mortos e, de novo, de dor e que isso não se deve fazer "carregando um cemitério nas costas" ou "cordéis de caixões" de modo cansativo, como explicou displicentemente Regina Duarte, Secretária Especial da Cultura no governo Bolsonaro, ao ser questionada sobre a Ditadura Civil-Militar Brasileira em uma entrevista para a CNN Brasil.
Não relegando ao silêncio dos arquivos nem à insensibilidade da ignorância, falar dos temas sensíveis deve ser inescapavelmente tomar as rédeas da atividade museológica em favor da criação e luta de uma sociedade mais tolerante, menos violenta, mais justa, menos segregadora. Isso justamente porque a atividade de pensar o passado e, com ela, inseparavelmente também o presente não é nem foi e nem será possível de ser compreendida como completamente fora das forças políticas cotidianas, dos discursos de validação ou invalidação, ou da consciência do impacto social, visto que:
[...] o passado, por assim dizer, interpela o presente e exige uma ação (ou e-moção) que transforma o lembrar enrijecido (GAGNEBIN apud. KAMINSKI, 2018: 139).
A dor de Diomedes pintada e exposta em museu, dor da morte, da violação ao corpo antes são, do filete de sangue que verte após as dentadas das éguas famintas de alimento e de chance para extravasar raivas é um modo estético, belo, artístico de dor. A dor que defendo ser tratada em museus é a da violência doméstica, a da fome, a da falta de educação e assistência médica, a do abandono parental, a do racismo e da homofobia. Expor por expor pode naturalizar essas dores que sabemos serem ceifadoras de vidas que já não mais são e de pleno desenvolvimento individual autônomo dos que não morrem, mas sofrem as opressões cotidianas, por isso, há de se ter os pés no chão e a ciência nas mãos para fazer destes assuntos chances de pensar, entender e propor modos de mundo e vida mais dignos a todos.
Não é dar o auge da arte pela arte em sua máxima extensão, uma vez que "se o prazer estético do belo não depende do conteúdo, até a execução de um crime, um assassinato, pode ser objeto de um juízo estético" (SCHØLLHAMMER, 2013: n.p.), ou que "'fiat ars, pereat mundus', diz o fascismo e espera que a guerra proporcione a satisfação artística de uma percepção sensível [...]" (BENJAMIN, 1987: 196). É não ser nem o Hércules que assiste tranquilo e anuente o fim amaldiçoado de outrem, nem fetichizar pela exposição do diferente ou do pseudo-incomum e depois naturalizar pela recorrência e falta de crítica o espetáculo das dentadas, do ataque, do rasgar da carne e da falta de vida no corpo humano que acometeu Diomedes. Então, é politizar a produção museológica em prol do necessário compromisso ético destes em sua posição na sociedade, sabendo que as éguas de Diomedes por vezes atacam pessoas e que é preciso falar sobre isso, não só dando nomes e rostos e formas, mas percebendo como se opera a violência tão presente e como um museu pode ajudar tanto em seu estudo quanto em seu combate.
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* Luciano Chinda Doarte é professor, historiador e um dos coordenadores do Grupo de Estudos e Pesquisas em Patrimônio Cultural (GEPPC).
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REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. Obras Escolhidas vol. 1. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.
GRIMAL, Pierre. Dicionário de Mitologia Grega e Romana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
KAMINSKI, Rosane. Emoção e Violência em Ressurreição (Arthur Omar, 1988). In: MORETTIN, Eduardo; NAPOLITANO, Marcos (orgs.). O Cinema e as Ditaduras Militares: contextos, memórias e representações audiovisuais. São Paulo: Intermeios, 2018. P. 129-153.
RICOEUR, Paul. A Memória, a História, o Esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp, 2007.
SCHØLLHAMMER, Karl Erik. Cena do Crime: violência e realismo no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: José Olympio, 2013. Recurso digital.
SCOTT, Joan W. Experiência. In: SILVA, Alcione Leite da; LAGO, Mara Coelho de Souza; RAMOS, Tânia Regina Oliveira. Falas de Gênero. Florianópolis: Editora Mulheres, 1999. P. 21-55. Disponível em <https://historiacultural.mpbnet.com.br/feminismo/Joan_Scoot-Experiencia.pdf>. Acesso em 9mai.2020.
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